“A raça humana não pode suportar muita realidade”
Quem o escreveu foi T.S. Eliot. Quem o subscreve, agora e sempre, é António-Pedro Vasconcelos. Fala o amante de ficção, o devorador de livros. Ou melhor, e citando o próprio, o devorador de “romances. Depois vem o resto”.
Furtando uma conhecida frase, dir-se-ia que primeiro era o Verbo. Nada disso. Primeiro era a luz, pois quando queríamos passar a palavra ao autor de ensaios, essa faceta menos conhecida de António-Pedro Vasconcelos, que também responde pelas suas iniciais, APV, a luz intrometeu-se.
O Tejo, ao fundo, contemplou-nos e não tomou partido. Mas a luz, essa, não perdoou e impeliu-nos da varanda para o interior, em busca de sombra e recato. Sem nos apercebermos, a ação já se desenrolava na biblioteca da casa de APV, onde a penumbra levava a melhor sobre o sol de outono.
Somos recebidos por Mário Soares, em estado hilariante, e Júlio Pomar, sereno e de sorriso nos olhos. Noutra parede, um recorte chama também a atenção. Desta feita pelo pesar, pela angústia, pelo medo que nela paira. Homens, mulheres e crianças no mar, numa miserável balsa que ameaça afundar-se a qualquer instante.
“Guardei este recorte a propósito da história de um capitão que abandonou os passageiros e de eles sobreviverem no mar, porque me lembra um quadro famoso de Géricault, «Le radeau de la Méduse». Está a ver qual é? É igual!”
E retirou um livro, dentre os muitos que formam torreões, quais ameias de castelo sobre uma imensa mesa, e abriu, num movimento lento e certeiro, na página onde está uma reprodução desse quadro. “A qualidade da imagem é péssima”. Mais uma vez a luz. A impressão não respeitou a luz. As nuances da luz. E assim regressamos ao ensaio que escreveu para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, “O Futuro da Ficção”, sobre o papel da ficção na cultura ocidental desde Homero até John Ford. Tão-só um dos seus realizadores preferidos.
Mas ainda não chegou o momento de falar de cinema com António-Pedro, que já disserta com enorme prazer sobre outro pintor e a sua capacidade de subversão: Velázquez. “O primeiro dinheiro que ganhei na minha vida foi a fazer banda desenhada, com 18 anos. E o primeiro dinheiro que ganhei foi para ir ao Prado ver este quadro, porque percebi que este quadro – e aponta para o “Cristo Crucificado” –, como todo o Velásquez, é completamente subversivo. Só que a subversão no Velásquez é uma coisa de que ninguém se apercebeu”.
Por que razão é que este quadro é subversivo? “Porque é o único quadro em que o Cristo está apoiado nos pés. Em todos os outros está pendurado na cruz, só que Velázquez não está a pintar Cristo, está a pintar o modelo. Para isso não o podia pendurar numa cruz. E depois pôs aqui uma coisa [e aponta para a aura na cabeça da figura retratada] para não dizerem que não era católico! E este aqui – “As Meninas” – é uma das maiores subversões que Velázquez alguma vez fez. Está a pintar as filhas do Rei, mas qual é o personagem principal? É ele próprio! E sabia muito bem o que estava a fazer.” [sorriso]
De Géricault e Velázquez ao Louvre foram breves instantes. Tempo ainda para cumprimentar a “Vitória de Samotrácia” e tecer loas a esta mulher alada enigmática, obra-prima da época helenística. Outro vício, paixão de APV: visitar museus. Não prescinde de tal “nicotina”. Mas já que nos encontrávamos na capital francesa, a pergunta impunha-se: se vivesse outra vez os anos 60 em Paris, voltaria a fazer tudo o que fez outra vez?