Salvo uns breves instantes entre 1993 e 1994 e novamente de 2009 a 2012, o Partido Liberal Democrático (PLD) governa o Japão desde o remoto ano de 1955, que coincide exatamente com o ano da sua formação. Para além de dar cabo daquilo que são as alegrias de uma votação inesperada – coisa que sucede na esmagadora maioria dos países democráticos exatamente por serem isso mesmo – o PLD demonstra não ter se não em si próprio o seu principal adversário. Nas eleições gerais antecipadas do passado domingo, esse adversário esteve mais ativo: o partido conseguiu mais uma maioria necessária para continuar a governar, mas com uma margem reduzida em relação àquela com que contava até ao sábado anterior.
O novo primeiro-ministro, Fumio Kishida, tinha uma boa razão para antecipar as eleições: a sua nomeação não resultou do voto popular. De facto, a nomeação de Kishida foi formalmente ratificada numa votação em ambas as câmaras – obteve 311 votos na Câmara Baixa, contra os 124 votos do principal líder da oposição Yukio Edano, e 141 contra 65 na Câmara Alta. Fumio Kishida, de 64 anos, sucedia assim a Yoshihide Suga, que se demitiu em bloco com o seu gabinete após pouco mais de um ano no poder. Mas a razão principal era política: Shinzo Abe, o mais popular primeiro-ministro japonês das últimas décadas, renunciou em setembro de 2020 por motivos de saúde e o seu sucessor, Yoshihide Suga, resistiu apenas por um ano. Os Jogos Olímpicos do verão passado, de que o resto do mundo menos o país que os organiza se esquece mal a chama olímpica é apagada, patrocinaram mais uma onda de Covid-19 e o lugar do primeiro-ministro foi uma das vítimas colaterais da pandemia.
Kishida estava por isso necessitado de um ‘banho’ de multidão que lhe permitisse ganhar a confiança dos japoneses não só para liderar o país, mas também para gerir a economia pós-Covid. Apesar de considerado impopular pelos analistas, Kishida ‘limpou’ as antecipadas com a mesma facilidade dos seus ancestrais de 1955. Mas isso não lhe melhora as perspetivas para os próximos quatro anos.
É que o Japão, sem ter propriamente culpa nisso, está no que se costuma chamar olho do furacão. Tradicionalmente beligerante – o Japão foi o único país que no século XX conseguiu entrar em guerra com a Rússia, a China e os Estados Unidos, fora as escaramuças na Coreia e uma ou outra passeata imperial e militar nos arredores do arquipélago – a pátria dos nipónicos é eminente pacífica desde que serviu de organismo vivo para as experiências nucleares dos norte-americanos. E assim se tem mantido, até porque a Constituição a isso obriga: “o povo japonês renuncia para sempre ao uso da guerra como direito soberano da nação e à ameaça e uso da força como meio de resolver contenciosos internacionais”, diz o artigo 9º do texto fundamental.
O problema é que, se o mundo muda pouco em território nipónico – robustamente fechado sobre si próprio, a pontos de ser dos poucos países que despreza o investimento estrangeiro e tem uma dívida pública gigantesca mas uma dívida externa quase a zeros – o mundo à sua volta está em constante mutação. E não é para melhor: o Mar da China é por estes dias um dos lugares mais perigosos do planeta. Sabia-se que os Estados Unidos e a China não são propriamente amigos – apesar do encontro histórico entre Mao Tsé-Tung e Richard Nixon em fevereiro de 1972 – como também se sabia que, no que tem a ver com a China, o pensamento político de Joe Biden difere em muito pouco do do seu antecessor. E se difere alguma coisa, é para pior: o democrata decidiu que só tem a ganhar em extremar as relações com a China – e a formação da tríplice aliança militar com o Reino Unido e a Austrália que tomou o nome de AUKUS é a inesperada consubstanciação desse ódio que parecia tão umbilicalmente republicano. Ora, sendo este AUKUS uma aliança que diz ser uma espécie de observador de Taiwan e um tomador firme da sua democracia, o Japão passa a fazer parte desse triângulo para onde se estão a virar todas as armas.
No caso de haver uma guerra ‘a sério’ entre o AUKUS e a China, Fumio Kishida, por muito que não queira, por muito que exiba o artigo 9º numa qualquer Assembleia Geral da ONU, terá que tomar uma posição. E nenhuma delas, como é fácil de compreender se se olhar para o mapa do Mar da China, é boa – nem mesmo se decidir manter-se obstinadamente neutro, coisa que por certo o ocidente, ou pelo menos os Estados Unidos, não lhe perdoariam. Para bem da Ásia e dos seus arredores (o resto do mundo), é bom que Fumio Kishida nunca seja confrontado com esta escolha.