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“O seu livro chegou, Palavra de Viajante”

Era uma vez uma viagem. Uma viagem longa. Suscitada por um livro. Segue o curso de um rio. Longo, como se queria a conversa. Era preciso tomar decisões para se chegar à Decisão. Com maiúscula.

Era uma vez uma viagem. Uma viagem longa. Suscitada por um livro. Segue o curso de um rio. Longo, como se queria a conversa. Era preciso tomar decisões para se chegar à Decisão. Com maiúscula. E assim foi. Partiram de carro, de Lisboa até à Alemanha, e depois seguiram o curso do Danúbio por causa do livro homónimo de Claudio Magris, e foram até ao fim, ao delta do dito, na Roménia. Depois regressaram a Portugal. Durante esse tempo foram conspirando a ideia.

Ana Coelho e Dulce Gomes, as duas amigas e sócias fundadoras da única livraria de viagens existente em Portugal, a Palavra de Viajante, não tiveram uma epifania com vista para o Danúbio. Tiveram a certeza de que queriam mesmo “avançar com o projeto”. O seu ritual sempre que viajavam, individualmente ou em conjunto, era visitar livrarias de viagem por essa Europa fora. Ritual, vício, prazer... “Na realidade, nem é preciso ir muito longe: Espanha tem, França tem, Itália também tinha uma, emblemática, em Roma, mas já fechou... Enfim, quem começou com isto [das livrarias de viagem] foram os ingleses, para aí no século XVIII. E é o tipo de loja que junta duas coisas que tanto eu como a Dulce gostamos muito, que são livros e viagens”.

Dito e feito, apetece dizer. Nada disso. “Ter ideias é mais fácil do que pô-las em prática”. Da burocracia inerente à criação de um negócio à enorme lista de nomes que não encaixavam no conceito, faltava o ‘clique’ do nome que seria a identidade do projeto. “Um dia, em Saint-Malo, no Norte de França, que tem um festival dedicado a literatura de viagens, nós estávamos lá e foi ao folhear uma revista que encontrámos a expressão «Le Mot de Voyageur». E deu-se o clique. Foi daquelas coincidências incríveis... Palavra de Viajante, Palavra de Viajante, Palavra de Viajante. A verdade é que nós aqui estamos rodeados de palavras de viajantes, por isso não havia nome mais perfeito! Claro que também se presta a algumas brincadeiras. Por exemplo, quando enviamos um SMS a dizer «O seu livro já chegou, Palavra de Viajante»”, diz Ana Coelho com um sorriso.

Há dez anos, a 25 de outubro de 2011, a Palavra de Viajante abriu portas na rua de São Bento, Lisboa. Inicialmente, esta zona não estava no radar das duas sócias. Procuravam ruas agradáveis para o comércio, mais conviviais, que “convidassem ao passeio”. Começaram pelas avenidas de Roma e João XXI, mas “os poucos espaços que havia tinham preços verdadeiramente incomportáveis. E uma das coisas que tínhamos decidido ter era um café, porque isso ajudava a trazer pessoas. Ora, na zona em questão nem os espaços eram interessantes, nem os preços eram convidativos.”
Nenhum mesmo? Diriam os franceses, “mon coeur balance”. Sim, até houve um espaço que fugiu à regra e até poderia ter sido a casa da Palavra de Viajante, ali na João XXI, já a caminho do Areeiro. “Mas o proprietário foi inflexível. Queria arrendar a um cabeleireiro. Ele achava que uma livraria não iria dar... Seria mais seguro e rentável um cabeleireiro”, explica Ana Coelho com um sorriso divertido.
“Foi assim que alargámos o raio de ação e descobrimos o nº 30 na Rua de São Bento. Foi paixão à primeira vista! Depois avançámos para obras, por causa do café”.

Falar de espaços é falar das suas estórias. E a Palavra tem muitas nesta década de vida. E a primeiríssima não pode faltar nesta singela homenagem. “No dia em que abrimos a livraria só vendemos duas coisas: um café e um capuccino. Sendo uma livraria... foi terrível! Até porque era preciso atravessar a livraria para chegar ao café, mas não vendemos mais nada no primeiro dia. Ficámos em estado de choque!”, recorda Ana Coelho. “Na altura não havia aqui nada, agora é que esta zona está cheia de cafés. Por isso, acabou por ser importante pois também servíamos almoços, apesar de não termos servido nenhum no primeiro dia! [sorriso] E começámos a ter clientes habituais: uns almoçavam e compravam livros, outros só almoçavam. Ou seja, alimentávamos o estômago e o espírito”.
Quando a livraria mudou para o nº 34 da mesma rua, a vertente ‘estômago’ deixou de existir, mantendo-se a galeria de exposições, onde a fotografia é um must. E uma das facetas que por aqui se cultiva. A par do afeto. É que nem só de livros se faz uma livraria. Faz-se de proximidade, cumplicidades, partilha. Ou não fossem as viagens uma espécie de código entre iguais. “Palavra de Viajante”, dirá alguém.
“Uma pessoa por vezes é capaz de chegar cheia de pressa, para levantar o livro que encomendou, e depois abstrai-se e fica a falar da última viagem que fez ou de uma viagem que a marcou em particular e não dá pelo tempo passar. Muitas das pessoas que começaram a aparecer na livraria, hoje em dia são nossos amigos. No fundo, acaba por ser uma troca de atenção e afeto. Propicia mais a conversa, das viagens à vida pessoal”.

Daí os reencontros, os clientes habituais, os que não prescindem de vir e desbravar novos mundos e geografias. Que confiam na pessoa que está do outro lado do balcão para as surpreender. “Há pessoas que vêm com regularidade, que vêm uma vez por mês, outras que aparecem com frequência ao sábado de manhã... É o público mais gratificante para nós, pois é o leitor que nós imaginamos quando estamos a encomendar livros novos. Não é só o tema do livro, é tu saberes que aquela pessoa quase de certeza que vai gostar daquele livro. E ela ainda nem sabe que existe. E isso só se consegue fazer com o tempo”. O sorriso não engana. “É tão bom!”.
E uma história irrompe. “Uma senhora que apareceu passado uns meses da abertura da livraria, disse que vinha conhecer o espaço e, depois, pôs uma pilha de livros em cima do balcão. Quando se despediu da Dulce – eu não estava –, disse: «Gosto muito de literatura de viagens e estava com muito receio de vir cá, porque tinha medo de ficar dececionada». Agora vem praticamente uma vez por mês e encomenda imensa coisa. [sorriso] Parecendo que não, são estímulos como este que nos dão ânimo para continuar e tentar encontrar coisas que as pessoas não estão à espera. E aprender cada vez mais!”
Desafios futuros? “Queremos voltar a dinamizar o espaço de exposições. A primeira vai ter lugar em novembro, até porque as pessoas só agora começam a sentir-se mais seguras e à vontade para sair. Temos vindo a crescer e ainda temos muito espaço para consolidar e continuar a crescer, porque ainda há muita gente que aparece e diz que não sabia que havia uma livraria de viagens em Lisboa”.

Para já, a ideia é continuar a descobrir nova literatura de viagens, em português e noutras línguas, que já habitam as estantes mas não só, e surpreender quem visita a loja. “Têm sido dez anos muito intensos e gratificantes”, garante Ana Coelho em nome da dupla que sonhou a livraria, apesar de alguns “momentos maus”. Como a pandemia. “E o facto de termos tido de fechar”. Houve um apelo para a livraria poder sobreviver. “A forma como as pessoas aderiram ao nosso apelo, para comprar vouchers, foi impressionante! Pedi o número de telefone a muitas delas para agradecer pessoalmente, tendo em conta que não podiam vir cá na altura”. Correu bem? “Sim, bastante bem. Foi extraordinário! E algumas pessoas deram um contributo individual muito significativo. Aí percebes que têm carinho pela ideia e por nós também, mas acima de tudo pela livraria!”, diz, emocionada.
Quando se entra no nº 34 da rua de São Bento, em Lisboa, fica clara a diferença entre um mero negócio e a concretização de um sonho. Perigoso é entrar, pois muitas vezes a viagem começa logo aqui. “Palavra de Viajante”.

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