Quando tudo fazia crer que a vida política de Alberto Fernández entraria em rápido declínio no passado fim de semana – com a derrota anunciada e naturalmente previsível da coligação que o sustenta na cadeira da presidência da Argentina, a Frente de Todos – as coisas passaram-se de modo sensivelmente diferente. É certo que Alberto Fernández perdeu as eleições – mas, como diria o outro, foi por poucochinho, e isso, como o prova a jurisprudência portuguesa, faz toda a diferença. Fernández perdeu as primárias, perdeu a maioria na câmara alta, perdeu deputados na câmara baixa, e finalmente perdeu a noite do passado domingo a comemorar a vitória.
É uma questão de gestão das expectativas: depois de perder as primárias de há um mês e de a oposição ter celebrado tão inequivocamente essa derrota, o presidente da Argentina partia de uma base com expectativas tão baixas que qualquer coisa que não fosse o desastre absoluto já não seria mau. E foi isso que o fez divertir-se no passado domingo e principalmente ganhar novo alento para as presidenciais de 2023 – a que, para já, conta concorrer.
Alberto Fernández tem agora pela frente dois anos de trabalho árduo para convencer os argentinos de que merece continuar à frente dos destinos de um dos mais importantes países da América Latina. E tem, desde logo, que convencer os seus próprios apoiantes – e essa nem sequer parece ser a parte mais fácil da questão. Tudo porque a ex-presidente, ex-primeira-dama e ex-indefetível de Fernández, de quem é vice-presidente, Cristina Kirchner (que por acaso, de solteira, se chama Fernández), está cada mais distanciada daquela ligação que não terá começado pelos melhores motivos e de que nunca resultou um verdadeiro bom entendimento.
Fernández, um peronista (geometria política intrinsecamente argentina que se foi confundindo com uma coisa a que chamaram kirchnerismo, transformando tudo aquilo num híbrido pouco inteligível) natural de Buenos Aires e advogado, forjou o seu perfil político longe do sindicalismo de base que costuma estar por trás dos argentinos de esquerda. O que, em 2003, chamou a atenção de Néstor Kirchner, então presidente e marido de Cristina Kirchner, que o nomeou coordenador do gabinete, uma espécie de super-ministro com ascendente sobre todos os outros. Néstor deixou a presidência em 2007, onde foi substituído por Cristina (calma: houve eleições, não foi o que a frase possa dar a entender), que manteve a confiança e Alberto. Mas Alberto é que não manteve a confiança em Cristina e em 2008 saiu, desgostoso com a direção que o novo governo estava a tomar. Mas o mundo, que como se sabe dá muitas voltas, fez com que, em 2019, Cristina, entretanto viúva de Néstor desde 2010, convidasse Alberto a concorrer às presidenciais como líder do ‘perono-kircherismo’, convite a que Alberto não pôde resistir – com a condição de a levar como vice-presidente. Resultado: Alberto Fernández é por estes dias, dizem os analistas argentinos, uma espécie de general sem exército. Ou pior: é o general de um exército que só cumpre as ordens do sargento. E Cristina está outra vez sem confiança em Alberto – a pontos de se ter recusado (a Covid-19 tem as costas largas) a participar nas lúdicas atividades de domingo passado.
E depois há ainda que convencer os opositores. O que também não será fácil porque não vai ser possível colocar no ativo o plano do costume: pôr a máquina de fazer pesos (o dinheiro argentino) a funcionar a todo o vapor e inundar todos os problemas com financiamento que alguém, algum dia, irá pagar. É que o FMI mantém a Argentina em rédea curta e não está para aturar desmedimentos.
E a oposição não vai por certo manter-se quieta, à espera de ver a vida política de Fernández renascer. O primeiro embate já está, aliás, previsto. No passado domingo, no seu discurso de derrota-vitória, o presidente fez saber que enviará ao congresso, quanto antes, um ambicioso plano de recuperação para fazer face aos estragos provocados pela pandemia. A oposição tem aqui um problema complicado para resolver: ou apoia o plano e, como efeito colateral, serve de esteio ao relançamento político de Alberto Fernández, ou não o apoia e deixa afundar o presidente, tendo como efeito colateral dar cabo dos próximos dois anos da vida dos argentinos.
Com a equação nestes termos, o pior de tudo parece mesmo estar reservado para quem tem o azar de viver na Argentina. A não ser que Cristina se tome de amores por um sujeito chamado Sergio Massa – mas essa é uma história que, para já, não cabe nesta página.