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Todos os sonhos são pesadelos

A Europa é diferente da China. Ao longo dos séculos diferentes dinastias e famílias sobreviveram, muitas vezes cruzando fronteiras, mesmo que não tenham poder vísivel.

A Europa é diferente da China. Ao longo dos séculos diferentes dinastias e famílias sobreviveram, muitas vezes cruzando fronteiras, mesmo que não tenham poder vísivel. Mas mantêm a influência. Chamem-se elas Habsburgos ou Bourbon. Ainda hoje, em Roma, algumas famílias dizem descender de Júlio César. Na China não é assim. Quando uma dinastia é removida do poder, chame-se Qing ou Ming, a sua autoridade ou influência evapora-se. Muitos destes conceitos estão hoje em jogo com o caminho de Xi Jinping para estar à frente do poder presidencial num terceiro mandato consecutivo. E talvez mais. Sabia-se que este era o seu desejo desde que, em 2018, lançou o seu projecto a que chamou “O sonho da China”. Nesse mesmo ano, na ficção de Ma Jian, Ma Daode lidera o departamento de Ziyang da Repartição do Sonho da China. Convicto na sua actuação, decide que a partir desse dia apenas terá sonhos positivos. Só que, apesar desta decisão algo acaba por torpedear os seus objetivos futuros: o passado, do tempo da Revolução Cultural da década de 1960, regressa como um pesadelo. Ma Daode, enquanto espera ansiosamente por um dispositivo tecnológico que permite apagar o passado para todo o sempre, acaba por tentar encontrar uma poção que, de forma mágica, lhe apague a memória. Algo que mestre Wang lhe pode fornecer, porque para ele tudo é simples: “Eu só quero apagar o meu pasado e recuperar o meu emprego. (...) O Sonho da China e o Sonho Global já não me interessam”. Ao que Wang responde, como a voz da realidade: “Mas se a vida se desligar do passado, perde o sentido”. E aí está o centro fulcral desta ficção.

Ma Jian, talvez um dos escritores mais críticos da “nova China”, cria neste livro um universo sarcástico sobre a duplicidade de muitos mandarins destes tempos: Ma Daode, por detrás da sua disciplina, é obcecado por dinheiro (acumula uma riqueza considerável) e sexo (mantém várias amantes), que contradizem o discurso e imagem oficiais. A vida é um ciclo e, claro, este livro é sobre esse ciclo, que não tem um fim definido tal como o entendemos no Ocidente. Ma Jian, o autor, confronta os leitores com uma questão explosiva: o que é ser chinês neste tempo? Em tom de comédia escura e irónica, essa pergunta ainda fica mais agreste quando Ma Daode visita um bordel local, onde o sexo se mistura com a lógica da economia e do comércio - da troca. Tudo se reconduz a isso (comércio, incluindo o das relações humanas), algo que os ocidentais acabaram por considerar um verdadeiro conto de fadas e caminharam para a China em busca do El Dorado.

O que é afinal o sonho chinês? Ou o sonho ocidental? Ou o sonho global? Ma Jian, neste livro, desmonta as estruturas sobre as quais assenta a sociedade dos nossos dias, as sonhadas e as reais. As que escondem a verdade debaixo de uma montanha de ilusões que corroem ideais, valores ou resistências. É por isso que é um livro tão estimulante.

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