Se Cuba continua a ter um lugar autónomo no imaginário político da esquerda como tendo sido, talvez antes de degenerar, o lugar da revolução mais romântica do planeta, o Chile tem também um lugar único nesse mesmo imaginário como o país onde a esquerda soçobrou pela violência das armas num lugar, o palácio de La Moneda, onde um presidente eleito assumiu a coragem solitária de não sair de lá com vida.
Haverá, por isso, quem sinta numa vitória de um partido ou de uma coligação de esquerda no Chile um sabor (saboroso) de vingança, por um lado, e de qualquer coisa que nasce outra vez, por outro.
Gabriel Boric Font – que se tornou presidente do Chile depois de vencer a segunda volta das eleições com uma margem ainda assim confortável de 55,6%, depois de ter ficado em segundo na primeira volta, com apenas 25,8% - é, ainda por cima, um jovem: tem 35 anos. Não faz por isso parte da velha esquerda que tende a esclerosar-se no poder, a ganhar tiques autocráticos ao cabo de uma simples reeleição ou a sorrir benevolentemente face à morte dos sonhos perante o primado de real politik. Há todo um mundo à sua frente e a pergunta que se coloca desde 19 de dezembro é mesmo essa: até onde vai esse mundo? Ou, perguntado de outra forma, que consequências pode ter a sua eleição num subcontinente que se parece com uma granada de mão (e não é só pela sua forma oblonga).
Desde logo no Brasil, onde haverá eleições presidenciais no próximo ano, Inácio Lula da Silva, candidato à presidência que ainda não é candidato à presidência, apressou-se a manifestar-lhe cordiais saudações do lado de lá da barrica dos seus 76 anos, mas não quis entrar no pormenor da existência de uma “onda de esquerda” que mais uma vez fosse varrer a América do Sul. De certeza não haverá.
Pouco mais ou menos o mesmo fez o presidente norte-americano Joe Biden, que se disse preparado para trabalhar com o jovem presidente chileno – não sendo nada provável que, no embargo da chuva que cai em Santiago, venha a preparar uma sortida de esbirros amotinados em baionetas e tanques de guerra, como fez o seu ‘antepassado’ Richard Nixon pela mão prestável de Augusto Pinochet.
Mas haverá com certeza pelo menos a disposição de transformar o Chile numa outra coisa. Apesar de novo, Gabriel Boric parece ter o domínio das subtilezas da sociedade do seu país: desde 1999 que anda nas ruas, debutou como parlamentar em 2014 e aí se manteve até agora.
Apesar de ser acusado de alguma radicalidade – nomeadamente pelo seu papel dirigente durante o pior da crise social que assolou o país em 2019-2020, tal como já tinha feito na crise estudantil de 2011 –, o contrato que apresentou aos chilenos como candidato à presidência não era um detalhe do catecismo esquerdista que os seus pares arriscaram noutras alturas.
Sobriedade fiscal – outra forma de dizer contenção nos gastos do aparelho do estado – e lugar à iniciativa privada são algumas das promessas.
Resultam essas promessas de um conjunto ortodoxo de apoios que o levaram à presidência e que obrigará Boric a uma cuidadosa gestão de equidistâncias: estão entre esses apoios os comunistas (herdeiros morais de Allende), mas também os socialistas (herdeiros do nome do partido fundado por Allende) e até mesmo os democratas-cristãos (que diversas vezes surgiram a governar em coligação com os socialistas).
Ou seja, Gabriel Boric tem toda a vantagem e toda a necessidade política de se manter fora dos limites estreitos do radicalismo de esquerda, não esbracejando por isso com nacionalizações, reformas agrárias ou quaisquer outra variante do ‘todo o poder ao povo’ da cartilha esquerdista institucionalizada na América do Sul. E com certeza não quererá passar os seus dias em La Moneda ouvindo do outro lado das grossas paredes os protestos cujo tom ajudou a elevar em 2019. Mas, claro está, a educação e a saúde patrocinadas pelos cofres públicos estão em cima da mesa.
Seja como for, o novo presidente tem pela frente desafios enormes. Desde logo, e será o pior de todos, a superação da crise económica bastamente gasolinada pela pandemia e por serviços sociais que não o chegam a ser.
O segundo será devolver o país ao lugar de liderança da América do Sul, numa guerra onde sempre se tentou imiscuir e que parece destinada a ser executada apenas pelo Brasil e pela Argentina.
E, finalmente, voltamos ao mesmo: Boric terá de dar a entender que (numa lição para o PT brasileiro) não é necessariamente verdadeira a frase segundo a qual, na América do Sul a esquerda perde principalmente quando ganha.