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A febre de sábado à noite

Portugal vive um momento Frankenstein: tornou-se um país de comissionistas. Na política e no futebol. Que acham que são os donos do jogo do Monopólio.

Num dos filmes dos irmãos Marx, Harpo, aquele que nunca falava e só comunicava através de um funil colocado no ouvido, comeu um telefone convencido que era de chocolate. Foi uma cena hilariante. Harpo Marx antecipava o que sucedeu no passado fim-de-semana no PSD. O doutor Rangel e aqueles que o apoiavam, às claras ou nas sombras, julgavam que o PSD era um telefone de chocolate. Descobriu-se que era feito de ferro e impossível de trincar. Aquilo que era para ser uma suculenta versão de sábado do Black Friday foi apenas uma noite de Halloween. Assim não se confirmaram os milagres pedidos e o que a eleição do doutor Rangel permitiria: a federação das Direitas a partir de um PSD ocupado e os garantidos lugares de deputados e de regedores de serviços públicos.

John Travolta não apareceu para a festa antecipada. E não houve “Febre de Sábado à Noite”. Restou apenas a corrida às farmácias em busca de Guronsan. Nada de estranho: com todos os seus defeitos, o doutor Rui Rio é um telefone de ferro e prefere o popular Rambo ao idílico Travolta.

O doutor Rio sabe que o Chega vai ocupar a franja dos descontentes à direita (e não só), mas sabe que só chegará a primeiro-ministro (ou perto disso) se conquistar a falida classe média, que sucessivos governos têm empobrecido e que só quer segurança e paz. Ou seja, querem um centro político que não os esprema mais em busca de impostos. Diretos, como nos tempos do doutor Passos; indiretos, como nos tempos do doutor António Costa. Austeridade, com mais ou menos sapateado. Enquanto, defronte dos seus olhos, quem ostenta milhões ou foge, ou é sujeito a julgamentos sem fim, ou recebe comissões sobre vendas de jogadores. E, sobretudo, destrói o SNS (como fizeram sucessivamente PS e PSD) em nome de interesses privados. E que vai ver a que bolsos vão parar os fundos do PRR e que lugares políticos continuarão a ser atribuídos numa dança sempre com os mesmos bailarinos.

A política é como o futebol: uma imensa Black Friday, onde não se cria riqueza, apenas se fazem “negócios” e se colhem comissões. E onde a culpa há-de ser sempre do funcionário da DGS ou do contribuinte que não pode fugir aos impostos. Na política, como no futebol, revela-se este país terceiro-mundista, onde ninguém responsável é culpado. A “vergonha” de um jogo que não deveria ter começado é a outra face dos centros de vacinação fechados à pressa para poupar dinheiro e que agora deveriam estar abertos e não estão. Este é o país do lucro rápido. Não o da construção de uma sociedade justa.
A empobrecida classe média (que vê os seus rendimentos caminharem para junto do salário mínimo) olha para dirigentes políticos e desportivos, sentados no seu poder ou nas suas “comissões”, e recorda um dos diálogos de “Os Marretas”, onde um assustado Cocas se vira para Fozzie e pergunta: “Onde é que aprendeste a conduzir?”, e este responde: “Tirei um curso por correspondência”. Portugal está agora à mercê de múltiplos Cocas e Fozzies e todos tiraram a licença de governar a política, o futebol ou os “negócios” por correspondência. Na Liga de Clubes, no Governo ou na oposição.

Tudo tem a ver com poder e dinheiro. Mas agora o doutor Rui Rio tem uma ótima oportunidade de refletir as preocupações reais dos portugueses e de abrir as listas de deputados a vozes que não sigam apenas o aroma do tacho. Tudo pode acontecer: o PSD ganhar ou ser uma solução de poder, ao centro. Por isso parte do partido tem insónias. O PSD, tal como o PS, é um partido pouco confortável com o abstrato. Prefere produtos que pode tocar ou levar para casa. Nesta idade da imagem os partidos precisam de líderes fortes que seduzam os cidadãos eleitores. São gulosos. Por isso deixaram de ser territórios de debate de ideias, de confronto de opiniões, de liberdade de pensamento. E quando têm cargos para distribuir e fundos do PRR para alguns, a tentação é maior.

Portugal vive um momento Frankenstein: tornou-se um país de comissionistas. Na política e no futebol. Que acham que são donos do jogo do Monopólio. E isso contaminou a sociedade que julgava que, como Cinderela, poderia ter direito a sonhar ter um sapatinho de cristal. Não aconteceu isso: o seu presente e futuro está hipotecado pela dívida, pelo défice e pelas comissões. Esssa raiva desaguou na vitória do doutor Rui Rio. Só resta saber se não ultrapassará as margens.

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