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Quando o Tribunal de Contas é especialista em sismos e afins

O Tribunal de Contas desempenha uma função central na fiscalização dos gastos públicos. Mas foi longe demais: o visto prévio subalterniza a decisão política e atrasa a economia.

O que aconteceu, no verão de 2024, ao projeto do Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, ilustra bem como o sistema português do visto prévio do Tribunal de Contas (TC) se afasta, por vezes, das suas competências de controlo estritamente financeiro e económico, interferindo em questões técnicas e políticas que atropelam a separação de poderes entre órgãos de soberania.
Na primeira análise ao projeto, o TC impôs obrigações relacionadas com a engenharia sísmica e exigiu alterações ao projeto executivo, o que obrigou o Estado e as entidades gestoras a rever contratos. Este compasso de espera pôs em risco as condições de financiamento e colocou em risco cerca de 100 milhões de euros de fundos comunitários destinados ao hospital.
Especialistas do setor público confirmam que este tipo de exigências não só resultou em atrasos como comprometeu metas do PRR, dificultando o acesso aos fundos europeus e agravando o custo e o calendário da obra.
Trata-se de um caso entre vários de como, ao abdicar da sua natureza financeira e económica, o Tribunal de Contas pode bloquear projetos de interesse público por motivos alheios à fiscalização das contas do Estado.
O modelo português de visto prévio é, na verdade, uma raridade à escala internacional. Além dos PALOP, nenhum país europeu aplica sistematicamente o controlo prévio a contratos públicos, excetuando Bélgica, Itália e Grécia, que o reservam apenas a situações de grande interesse nacional e sempre em projetos de valores elevados.
Em Portugal, todos os contratos acima dos 950 mil euros estão sujeitos a visto obrigatório, um regime com décadas de alterações sucessivas que transformou a lei numa manta de retalhos. Por exemplo, projetos com fundos comunitários, dada a urgência em aplicar as linhas de Bruxelas para não as perder, estão isentos da obtenção de visto.
Este sistema tem gerado obstáculos burocráticos como também aconteceu no processo do Matadouro de Lisboa ou noutros concursos públicos onde as exigências do TC motivam sucessivos atrasos, custos adicionais ou até perdas de financiamento. O risco de populismo judicial acentua-se com o Tribunal de Contas a assumir uma responsabilidade que deveria caber exclusivamente às entidades técnicas e reguladoras.
Na maioria dos países europeus, o controlo dos contratos públicos ocorre de forma posterior, orientado por princípios de value for money e por auditorias periódicas das entidades públicas e dos tribunais de contas, tal como acontece ao nível comunitário e na atuação do Tribunal de Contas Europeu.
Com a execução do PRR, Portugal precisou até de regimes legais transitórios para viabilizar contratos sem visto prévio, evidenciando a inadequação do modelo nacional face às exigências de execução dos fundos.
O novo regime planeado para vigorar a partir de 2026 proporá, segundo uma fonte que acompanha o processo, um modelo com auditoria interna reforçada pelas entidades públicas — como sucede na UTAP, relativamente às parcerias público-privadas — e uma possível “câmara de auditoria jurisdicional” dedicada aos contratos de maior dimensão.
Esta alteração legal permitirá que a generalidade do escrutínio prossiga de forma autónoma nos próprios ministérios, relegando para o Tribunal de Contas funções de fiscalização especializada, exclusivamente dedicada às situações expressamente justificadas por valores ou impacto estratégico.
A ideia do Governo passa também por reforçar a responsabilização dos gestores públicos, mitigando os riscos de bloqueio formal e agilizando os processos decisivos para o interesse coletivo. Isto é, pretende devolver eficácia ao controlo da despesa pública e garantir que a fiscalização recai onde se justifica — na legalidade, economia e eficácia — sem os atrasos, custos e constrangimentos que têm caraterizado projetos como o Hospital de Todos os Santos.

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