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“Outras Paragens. Um Pequena Antologia”

"Parti, então, com muita alegria, para a minha apetecida romagem às cidades da Europa. Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, à pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia num vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me escangalhavam a entranha. (...) Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três ceroulas e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito.”

"Parti, então, com muita alegria, para a minha apetecida romagem às cidades da Europa. Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, à pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia num vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me escangalhavam a entranha. (...) Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três ceroulas e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito.”
Na história da literatura portuguesa de viagens, o nome de Eça de Queirós aparece sobretudo devido ao memorável “O Egipto. Notas de Viagem - apontamentos durante a inauguração do canal de Suez”, que já mencionámos nestas páginas. Mas o gosto pela viagem e pela descrição de paragens distantes, pelo exótico e pela aventura, pelas civilizações e pelo xadrez da política internacional aparece em toda a sua obra, disperso em vários títulos, de ficção ou crónica e comentário.
“Outras Paragens. Um Pequena Antologia”, agora publicado pela Quetzal, reúne alguns desses textos, incluídos em romances como “A Cidade e as Serras” (donde foi retirado o delicioso excerto com que iniciámos este texto) ou “A Relíquia” (quem não se lembra das desventuras de Teodorico Raposo que, em viagem à Terra Santa, traz, por lapso, não a relíquia que prometera à tia beata, mas sim, a camisa de dormir de uma amante?), e outros constantes de notas e correspondência que escreveu para a imprensa.

Textos sobre Paris (Eça tanto discorre sobre o inverno na cidade, o senhor prefeito da polícia ou o seu muito admirado Flaubert), a Coreia e o chapéu dos coreanos (“muito alto, muito pontiagudo e de abas tão vastas que sob ele um patriarca pode abrigar toda a sua descendência, os seus móveis e os seus gados”), Londres (cuja cultura abraçou e onde terá tomado plena consciência do provincianismo português), o Egipto e até um pequeno texto sobre Lisboa compõem mais de metade do livro.
Que inclui ainda “A sociedade e os climas” (de “Cartas de Paris”) em cujo parágrafo inicial recorda um discurso parlamentar de Fontes Pereira de Melo sobre a superioridade climática nacional – que compensaria a falta de recursos naturais, vias férreas e indústria desenvolvida – e a leva mais longe, numa deliciosa comparação entre o cidadão de Londres, Paris ou Berlim (“abafado em peles até aos olhos, com as calças arregaçadas, as mãos ambas agarradas ao guarda-chuva”) e os hundus ou os árabes de Damasco, “cobertos pelo esplendor de um céu que é uma fonte de alegria”.

Naturalmente sem textos inéditos, um dos méritos deste livro é dar-nos uma desculpa para voltarmos a conviver com um dos maiores escritores portugueses, agora em seleção temática, mas sem se perder o humor apurado. Condensado, este é um Eça disperso e atento ao mundo e às suas transformações, observador atento e cronista divertido, que nunca perdeu o gosto pela viagem – por muitas ceroulas que possam ter-se extraviado – e sempre genial.

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