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Os tostões e as salsichas

Ninguém pede, no seu juízo perfeito, que o OE seja uma salsicha gourmet. Serve sobretudo para dar um ar asseado ao Governo junto dos cidadãos, das corporações e dos investidores estrangeiros. O OE é um atestado de idoneidade pública. Em Portugal tem sempre o mesmo sabor: é a fonte dos impostos.

Há uma frase que se atribui ao político prussiano Otto von Bismarck, que nunca perdeu a atualidade: “As leis, como as salsichas, deixam de inspirar confiança à medida que sabes como são feitas”. As salsichas, claro, são normalmente mais saborosas do que as leis orçamentais, mesmo que estas sejam condimentadas com bastante mostarda. Ninguém pede, no seu juízo perfeito, que o OE seja uma salsicha gourmet. Desde o Orçamento do queijo Limiano que todos perdemos essas duvidosas esperanças. Afinal o OE serve sobretudo para dar um ar asseado ao Governo junto dos cidadãos, das corporações e dos investidores estrangeiros. E para dividir diferentes doses de salsicha pelos sedentos ministérios. O OE é um atestado de idoneidade pública. Se é verdadeiro, só se sabe depois de se comer a salsicha. Em Portugal tem sempre o mesmo sabor: é a fonte dos impostos. É um conjunto de intenções de curto prazo, que serão patrioticamente incumpridas nos meses seguintes pelas cativações. Nada nos diz sobe estratégia (por exemplo, qual é o plano para o futuro do SNS, coisa com que ninguém parece estar minimamente preocupado mesmo depois da pandemia), e tudo sobre negócios táticos. O OE é fast-food servido nas barracas de bifanas antes dos jogos de futebol.

Por isso causa tanta discussão: cada partido entende-o como uma patuscada, onde é possível garantir um pouco de feijoada para distribuir com o seu clube. O país rói as unhas: sem OE cai o Governo? Se cair, levanta-se a oposição? A única coisa certa é que estes últimos dias mostraram que cheira a fim de ciclo. O enebriante patchouli do empobrecimento segue dentro de momentos, porque a inflação vai aparecer mais depressa que a próxima temporada do “Dead Man Walking”. A bazuca é uma pistola de bolinhas de sabão. A sociedade portuguesa ameça tornar-se irrespirável a curto prazo.

Um Estado e sociedade que vive de impostos e não tem forma de os aliviar, pela forma como sempre foi estruturada desde há séculos, não tem muito para distribuir pelas diferentes fações. A que é que se assistiu nestas últimas semanas? Dançou-se animadamente no andar superior do prédio, e todos manifestaram um profundo desprezo pelo sossego dos infelizes vizinhos, que são os portugueses, que olham apavorados para o que o aumento dos preços da energia vai trazer. Os inspirados salvadores do país estão, claro, preocupados com outras coisas. Não com a falta de carapau ou de costeletas. Mas sim com a abundância de possíveis ministros, que devem estar a chegar de comboio ao Rossio, se este não atrasar, como é habitual. Por alguns devem poder pagar-se preços exorbitantes, mesmo em segunda mão, para distribuirem justa e equitativamente, para os mesmos de sempre, os fundos da bazuca. Isto se o “rating” da dívida não cair, os juros não subirem e se o BCE não deixar de comprá-la.

Tal como dizia Stevie Van Zandt, o fiel escudeiro de Bruce Springsteen na E Street Band, “o rock é uma espécie em vias de extinção”. Podemos associar o rock à classe média, onde emergiu na década de 1950 fruto do poder de compra dos jovens que compravam guitarras e se juntavam para criar. Hoje, a música é predominantemente eletrónica, hedonista e individual, como a sociedade. Há pouco espaço para núcleos criativos como os de Lennon/McCartney/Harrison nos Beatles. Há cantores e poucos grupos. Stevie Van Zandt sabe do que fala: ele era Silvio Dante, o gerente do club de striptease dos “Sopranos”, que sonhava com o estilo dos anos 50 e pugnava pela economia subterrânea. O rock foi o símbolo da classe média, do estado de Bem-Estar e da mobilidade social. Uma coisa é certa: o rock poderá acabar, a classe média também, mas os impostos sobreviverão em Portugal. Com ou sem este OE.

A discussão do OE, onde se negoceiam as tristes migalhas de um país pobre, acontece numa época em que Mark Zuckerberg anunciará um novo Facebook com base no metaverso. Isto é: pretende transladar o mundo real para um mundo virtual sem limites e onde haverá de tudo, gerido claro, pelo intelectual Zuckerberg. Escusava de inventar isso. A elite nacional já o inventou, sem tecnologias de Silicon Valley. Criou-se um mundo virtual, onde a todos é prometida a felicidade, no meio da pobreza real. Será possível continuar a conciliar os dois mundos?

Há muitos anos, o grande grupo português A Banda do Casaco gravou um tema ácido: “O Enterro do tostão”. Foi antes do fim do escudo, foi anterior ao nascimento do euro. Cantava-se: “Ai venham todos, ai venham já, que este jardim está ao Deus dará, ai venham todos, ver como isto é, que este jardim anda ao giroflé”. Estávamos em 1978 e caminhávamos para a primeira intervenção do FMI em Portugal. O enterro do tostão era, na realidade, o dobrar dos sinos por todas as esperanças. A pretensa elite nacional não aprendeu nada.

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