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“As grandes auditoras não vão desalojar os principais escritórios de advogados”

Entrevista com Duarte Garin : Quando fundou o escritório português da Uría Menéndez, em 2001, o advogado encontrou um mercado dominado por sociedades nacionais. Hoje o panorama é muito diferente. De saída da firma após ter atingido o limite de idade, Duarte Garin reflete sobre o futuro da Uria e do sector.

Quando fundou o escritório português da Uría, em 2021, o mercado era muito diferente. O que mudou desde então?
De facto muito mudou. Estou evidentemente a falar na advocacia de negócios, a partir das sociedades de advogados com alguma dimensão que é a realidade que conheço praticamente desde o início da minha carreira profissional. As principais cinco ou seis firmas portuguesas tinham o domínio absoluto do mercado.  A relação com os seus clientes era muito estável, havia um sentimento de posse sobre os clientes. Todos sabíamos que a empresa A era cliente de tal escritório e poucos se atreviam a abordá-la para propor os seus serviços. Os clientes tinham com as firmas uma relação quase exclusiva. Isto já não é assim, ou pelo menos não é na mesma medida. É claro que todas as firmas contam com clientes com quem têm relações muito preferenciais e nalguns casos até mesmo exclusivas. Mas já não é a uma regra absoluta. Muitas empresas desenvolveram relações com vários escritórios a quem recorrerem dependendo dos assuntos, M&A, Tax, concorrência laboral etc. Isto permitiu uma maior abertura do mercado e as firmas acordaram para uma nova realidade de concorrência muito grande. Também o relacionamento das firmas com os advogados, incluindo sócios, era muito diferente. Praticamente não havia movimento de sócios de uma firma para outra, e raramente de advogados. A entrada das firmas não nacionais alterou muito isso.

 

E o Duarte, o que mudou na sua forma de olhar a profissão?
A advocacia de negócios é a mesma, mas é hoje muito mais especializada e exigente do que era. Não falo de exigência em termos de dedicação. Há hoje, da parte das firmas, uma preocupação muito maior com proporcionarem aos advogados e colaboradores maior conciliação entre a vida profissional e familiar.

 

Para além de ser um imperativo de justiça, quem não tiver este foco acabará por estar em desvantagem na retenção de talento. A exigência é muito maior porque os nossos serviços passaram a ser prestados debaixo de uma enorme pressão de resposta. Os problemas são colocados e é exigida uma resposta imediata. A qualidade do serviço passou – mal, diga-se de passagem- a ser medida mais pela rapidez de resposta, e menos pelo conteúdo. A exigência resulta da necessidade de manter a qualidade em muito menos tempo. Também a relação cliente-advogado se alterou. A diversificação a que me referi por parte dos clientes na escolha do assessor legal está hoje mais focada na firma e menos na pessoa do advogado, o que dificulta o estabelecimento de relações pessoais e de confiança. É cada vez mais difícil um jovem advogado tornar-se num trusted advisor do seu cliente, o que é essencial para criar valor ao cliente.

 

Este é um desafio que as novas gerações terão que superar. Isto para não falar nos desafios que a Inteligência Artificial vai colocar à profissão e que neste momento não consigo - nem sei se alguém consegue - prever. É um cenário muito diferente de há 20 anos.

O que trouxe a Uría de novo
e de disruptivo?
Algumas coisas. Desde logo no que se refere à carreira dos advogados, recrutamento, plano de formação e carreira. Lembro-me por exemplo de que em Portugal os estágios não eram, na sua maioria, pagos. A Uría entrou em Portugal e desde o início começou a pagar aos estagiários. Era a regra em Espanha e a firma não concebia que não fosse assim em Portugal. Isto provocou um abalo grande no mercado e todas as firmas rapidamente se adaptaram. Começámos a recrutar nas universidades, fazíamos reuniões com finalistas para nos apresentarmos. Poucos alunos nos conheciam. Definimos um plano de carreira, muito claro, que permitia, e permite, que os advogados saibam a cada momento o que podem esperar. Investimos a sério em formação interna e externa e os advogados rapidamente perceberam que estar na Uría era um excelente investimento no seu futuro. Tudo isto pode hoje parecer banal e evidente, mas não era. Reconheço que as firmas nacionais se adaptaram. Não seguem o nosso modelo, têm as suas formas de responder a estes problemas. Mas o pontapé de saída foi dado pelas firmas internacionais com a Uría à cabeça.

 

Cresceram muito por aquisições, nos primeiros anos. Que ensinamentos retirou e que conselhos dá a quem procura crescer por essa via?
Não tenho a pretensão de dar conselhos a ninguém. Mas sim tivemos experiência de integrações que me levaram a concluir que são processos muito complexos. Quando vemos advogados envolvidos em fusões ou integrações é muito comum referirem a coincidência de valores. É claro que sem isso não há fusão que resulte. Mas tão importante como a comunhão de princípios e valores, que em grande medida são partilhados por quase todos, é a compatibilidade de culturas. Já não falo em que os intervenientes tenham a mesma, porque cultura é algo muito específico. Demora tempo a adquirir uma cultura, tem que ser prosseguida pelos responsáveis da sociedade que em cada momento têm nas mãos os destinos da firma. Não pode mudar ao sabor de cada um deles. E quando se interioriza uma cultura esta adquire uma importância muito grande e pode ser um elemento de agregação ou pode ser o contrário se não houver compatibilidade. É por isso essencial que a cultura dos intervenientes seja analisada, diria mesmo que seja objeto de due diligence. Se não for assim há um risco de surgirem atritos e tensões, o que será prejudicial para o bem-estar interno e para o desenvolvimento da sociedade.

 

O futuro do sector em Portugal passa por mais concentração?
Não creio que se possa dizer que o futuro passa necessariamente por isso. Desde logo porque vejo a generalidade das firmas muito consolidadas, estáveis e não deteto uma vontade nem uma procura de parceiros para se juntarem. Não quero dizer que não possa acontecer uma ou outra fusão pontual. Mas de todo vejo que seja um objetivo generalizado.

 

E vê mais players estrangeiros a entrar em Portugal, após a recente chegada da Pérez-Llorca? Ou o mercado é muito pequeno e podem cobrir Portugal a partir de Madrid?
Não vejo. Se virmos a lista das 10 maiores firmas espanholas por faturação, com a recente a entrada do escritório Pérez-Llorca, passam todas a ter presença direta em Portugal. Não penso que as anglo-saxónicas, que não estão cá, devam ter grande apetite pelo nosso mercado que é de dimensão reduzida e com fees muito inferiores ao que praticam no Reino Unido. A nossa ligação ao mercado africano, principalmente a Angola e Moçambique, poderia mudar esta perspetiva, mas isso não aconteceu no passado, quando as condições para investimento naqueles países, sobretudo em infraestruturas, eram mais favoráveis. Pelo menos para já e sem que se modifique esse quadro, não veja que aconteça uma alteração significativa na estratégia dessas firmas.

 

Com a multidisciplinaridade irá acontecer como em Espanha, onde as ‘Big Four’ têm uma presença muito forte, mas onde os grandes “bufetes” ainda lideram os rankings do sector?
A multidisplinaridade será mais um desafio que se vai colocar a todas as firmas em Portugal. Não porque sejam novos concorrentes. Na verdade a maioria das firmas de auditoria está já associada à prestação de serviços jurídicos, através de firmas relacionadas. Mas agora poderão passar a associar as suas marcas, que são relevantes, assumindo abertamente concorrência às firmas de advogados. Em Espanha, como referiu, entre as 10 maiores firmas em faturação contam-se várias auditoras. É uma realidade impossível de ignorar e as firmas de advogados terão de conviver com ela. Eu prevejo que possa suceder algo semelhante ao que aconteceu em Espanha onde, como disse as auditoras tiveram e têm impacto, mas não desalojarão as principais firmas de advogados das posições que têm no mercado. Veremos dentro de uns anos.