Meu coco é uma forma popular e antiga de dizer “a minha cabeça” no Brasil, terra que tem aberto novas janelas para a língua portuguesa. Sem fechar as antigas, ao contrário do que se tem feito por aqui. Bardo da língua e da música, Caetano Veloso regressa no limiar dos seus 80 anos com o desconforto próprio de quem nunca se resignou às verdades circundantes. Como aconteceu entre 1967 e 1968, quando o Tropicalismo abanou as delicadas melodias desses dias e as apertadas regras do regime militar reinante. Hoje Caetano está no lado de fora, abanando o patético governo de Jair Bolsonaro. De onde caem cocos, que acertam na fragmentada sociedade brasileira. Olhar crítico, combina isso com uma sensibilidade única, como fica evidente neste novo disco, “Meu Coco” (CD Sony 2021).
Há aqui alvos bem definidos, a começar pela nova ordem mundial arquitetada em Silicon Valley, o quartel-general das empresas de tecnologia globais que usam os algoritmos como guarda pretoriana de um novo domínio nas fronteiras estreitas das redes sociais.
Tudo está num tema fulcral deste disco, “Anjos Tronchos”, onde as palavras se impõem ao som sombrio dos sintetizadores e à leveza do baixo e guitarra. É a ironia do destino. Caetano usa a tecnologia para combater a sua radicalidade totalitária: “Que é que pode ser salvação? / Que nuvem, se nem espaço há? / Nem tempo, nem sim nem não. Sim: nem não”. Está aqui tudo. Mas este “Meu Coco” é muito mais do que isso. Há o funk muito político de “Não vou Deixar”. E há a homenagem aos grandes músicos brasileiros, de Pixinguinha a Milton Nascimento, convocados como se fossem orixás em “Gilgal”. Isto porque, por detrás das leituras sombrias da realidade, Caetano não perde o otimismo, mesmo se “o português é o negro dentre as eurolínguas”. Porque a felicidade ainda é possível, mesmo se o Brasil deslizou do “país do sonho” em que se acreditou poder ser por um momento. “Meu Coco” é uma lição de criatividade de um grande autor. Uma carta de amor no meio do nevoeiro.