A política é, em Portugal, um grémio almoçarista. Tudo se resolve ao almoço, com faca e garfo. E, sobretudo, uma grande colher, para que não possa sobrar nada da sopa. Não é algo que nos possa admirar. A barriga cheia é um imperativo nacional, mesmo que depois se rebente de tanto comer. As sábias palavras do senhor Antonin Carême, no século XIX, já explicavam tudo: “presidir a uma câmara política ou ter um curso numa embaixada é tirar um curso de gastronomia”. Neste momento, antes do peru e do bacalhau de Natal, a classe política saliva. Está a pensar já na sobremesa de janeiro, a que deram o pomposo nome de “eleições”. Uma espécie de papos de anjo ainda mais doces.
Ninguém ainda adivinhou com quem vai almoçar. Mas todos os palpites são válidos. O PS prefere almoçar sozinho, para não ter de dividir o cozido à portuguesa com couves de Bruxelas com ninguém. Se tiver de o fazer, o doutor António Costa não sabe se prefere salsicha ou morçela. Isto é, se prefere dar umas rodelinhas ao PCP e ao BE, ou se deve, como sussurram o doutor Assis e o doutor Ferro Rodrigues, acenar com rabanadas ao PSD. Neste partido, claro, ainda reina uma grande confusão sobre qual o “chef” que preparará a ceia de Natal. O doutor Rui Rio quer mesmo almoçar uma coisa frugal e já disse que: “se não conseguir uma maioria à direita, era bom o PS estar aberto a negociar comigo”. Se não comer carne de vaca, degusta frango. O doutor Paulo Rangel, mais cuidadoso, prefere almoçar com o CDS e a IL, mas lá deixa escapar que PS e PSD deveriam criar um menu de criança, estilo decidir o número de ministérios que o país deveria ter. Nada disto é motivo de espanto. Ou seja, não há restrições gastronómicas, excepto os pratos com malagueta.
O CDS do doutor Chicão quer almoçar com o PSD, seja ele o do doutor Rio ou do doutor Rangel, sem menu prévio, mas antes das eleições. Para garantir lugar na mesa, não vá acontecer o caso de, depois de ter conseguido afastar uma das melhores parlamentares dos últimos anos (a doutora Cecília Meireles), não conseguir ser eleito. O Chega, já se sabe, é um almoçarista infiel: faz acordos, depois trinca-os como se tivesse uma descarga da vesícula, e volta a fazê-los. O doutor Ventura fica agoniado por almoçar com alguém, mas ainda não chegou o tempo de se sentar sozinho à mesa para comer até os ossos da carne do cozido à portuguesa. Mas se o PSD o deixar, ele não hesitará em fazê-lo. O problema é que se estão a marcar almoços por antecipação, dois meses antes das eleições. É como pedir uma refeição à Glovo sem saber o que é que se deseja trincar. Pode acontecer que o rapaz da bicicleta não traga nada na mochila.
Por alguma razão se diz que os almoços não são grátis. Alguém tem de os pagar, mesmo em momentos em que há falta de almas piedosas. Ainda assim e apesar da dívida, do défice e da pobreza reinante, Portugal continua a ser um suculento prato de arroz doce. Tentador para alguns, com um travo de canela só ao alcance de quem tem mais e melhores conhecimentos. O país não está muito diferente do que Teixeira de Vasconcelos descrevia no seu romance “O Prato de Arroz Doce”, cuja acção decorre durante os anos da Patuleia (1846-1847). Lemos nesta obra maior do século XIX: “Para o sr. José Alves o governo de um reino e a gerência de uma casa de negócios eram coisa idêntica. O patrão manda, os caixeiros obedecem, e tudo vai às mil maravilhas. Isto dizia ele que não impedia a liberdade, e a prova era que havia cortes, periódicos e os outros atributos dos governos liberais, de que no fim de tudo ele gostava sem ao certo saber porquê”.
O país, coitado, não mudou assim tanto. Tudo se resume a duas dúvidas: quem vem almoçar e quem paga a conta? Cirandemos pela política nacional. Todos têm fome de poder ou de, pelo menos, umas migalhas dessa sensação que motivou os maiores escritores, dos clássicos gregos, a Cícero ou Maquiavel, a escrever sobre ele. E sobre a forma como conquistá-lo e exercê-lo.
A questão essencial continua a não ser discutida ao almoço ou ao jantar. E essa é: que modelo de país queremos? Para isso poderá contribuir o eventual recentramento do PSD. Até porque a centralidade foi sendo destruída através de austeridades radicais e moderadas, consoante os modelos. E que, entre uma corrupção latente, foi eliminando o poder moderador da agora falida classe média. Para quem os almoços são cada vez mais frugais. É certo que o futuro deste recanto continua a estar dependente do que a União Europeia decide (ou não decide), numa altura em que os seus problemas parecem não terminar. E onde todos, por uma razão ou por outra, já ignoram o que diz Bruxelas ou, mesmo, Berlim. Vive-se num clima de salada russa que um dia destes terá de dar lugar a algo mais claro e límpido.
Faltam ideais. Porque também há défice de ideias. Faltam vozes novas e sobram, como nas livrarias, as reedições de clássicos, porque não se pagam direitos de autor. Cada contributo para o grupo almoçarista é apenas um programa para se ser poder. Enquanto isso vamos assistindo às novelas do doutor Rendeiro, do doutor Luís Filipe Vieira, dos diamantes e tantas outras, disfarçadas pelas alegrias e tristezas do futebol. Estamos cercados por esta política suicida, falsamente gastronómica, numa sociedade em decadência económica, política e cultural. Tal como a Viena de “O Homem sem Qualidades” de Robert Musil. Mas com fome.