Skip to main content

Num país a preto e branco

O doutor Costa e o doutor Rio querem conquistar o “centro”, a terna classe-média. O problema é saber se ainda existe essa classe média idílica ou se ela é uma miragem.

Há muitos anos Pirandello convocou a sociedade para ver a peça “Seis Personagens à Procura de um Autor”. Nela, parte dos personagens diziam poucas coisas. Duas, sensatamente, não diziam mesmo nada. Outros não paravam de falar. As próximas eleições ameaçam parecer-se com esta peça de Pirandello: poucos vão dizer coisas com sentido e os restantes terão medo de dizer o que as sondagens de opinião podem desmentir. O poder tem de criar ilusões. Sem isso ele é um produto branco de supermercado. Mas, num momento de confusão absoluta sobre o futuro do país, será possível ficar calado ou dizer banalidades?

Portugal vai procurar um primeiro-ministro, tal como os Cinco de Enid Blyton procuravam resolver mistérios policiais. Para já só temos duas certezas: o doutor António Costa, ciente do que é ter um Governo grande e cansado, promete uma dieta e fazer um Governo mais pequeno. O doutor Rui Rio não confidencia qual o tamanho do seu Governo, mas não confia muito em coisas pequenas. Para isso já lhe basta a IL, o CDS e o Chega, que valem “meia-dúzia” de votos. O resto é nevoeiro. Não é a obesidade que faz a qualidade de um Governo: é se é bom ou mau. Não é por ir ao ginásio ou comer espinafres que resolve os problemas estruturais do país. Se assim fosse contratava-se Popeye para governar o país.

A questão não vai ser se o Governo é gordo ou magro. Ou se devemos criar um novo feriado nacional quando chegar o salvador primeiro cheque do PRR, esse motivo de orgulho local. Como é que o doutor António Costa e o doutor Rui Rio olham para o país e para o eleitorado? Ambos querem conquistar, com juras de amor, o “centro”, a terna classe-média. O problema é saber se ainda existe essa classe média idílica, outrora a espinha dorsal das democracias, ou se ela é uma miragem. Porque, em Portugal, os rendimentos dessa classe média começam a estar muito próximos dos garantidos pelo salário mínimo. Ou seja em Portugal há uma classe outrora conhecida como média. Que se sente abandonada, dispensável e começa a acreditar que só pode ser representada pelos novos radicais, à direita ou à esquerda.

Lembremos só uma coisa: foi o bloco central dos Beatles (Lennon e McCartney) que manteve a chama criativa do grupo; quando ambos se desentenderam, a banda extingiu-se. O centro é isso. Quando se faz com que a classe média se extinga como os dinossauros, escusa-se de a tentar encontrar. O antigo líder conservador britânico Michael Portillo compartilhou com a televisão, em 2003, uma inédita experiência para um político. Durante uma semana viveu com o salário de um inglês de classe média/baixa em Liverpool. Percebeu, desta maneira, o que sentiam os cidadãos comuns britânicos. Foi uma nova forma de fazer política, longe dos gabinetes onde muitas vezes a oposição se devora a si própria. Nada disso sucederá aqui. Nos seus inflamados discursos os líderes vão prometer zelar pelos verdadeiros interesses do país. Por que isso corra bem evitarão falar da inflação que, ao mínimo espirro, vai provocar uma constipação para a qual ninguém tem vacinas ou chá de limão. Não falarão da necessidade de financiar estratégicamente o SNS evitando deixá-lo definhar. Evitarão falar das razões reais para o despovoamento do interior do país. E, convenientemente, fugirão a debater a sociedade “low-cost” onde o país vai ser forçado a viver. Vão trocar-se insultos como se fossem bolos-rei. E disso se falará na televisão. Do insulto e não dos problemas reais dos portugueses reais. Que começam a ser visíveis nas lojas de roupa, nos supermercados e na falta de muitos produtos. A sociedade “low-cost” para onde caminhávamos alegremente graças aos delírios do doutor Sócrates, a austeridade implacável do doutor Passos Coelho e a manhosa do doutor António Costa, vai ser muito pior.

Mas não poderíamos aspirar a mais. Este é um país onde, apesar de este ano o “Financial Times” considerar Paula Rego uma das mulheres mais influentes do mundo, a nossa elite política (e não só) é inculta: não lê, não vê, não ouve e não tem mundo. É pobre, mesmo que ostente milhões. Por isso a sociedade civil não tem músculo e sobra o comodismo e a inveja, típica de universos pobres de espírito. Que vai ser o debate nestas eleições? Sobre nada de empolgante. Porque as coisas sérias não se vão discutir. Olhando à volta sente-se esse ambiente tóxico. O problema não é só português. Helena Daili, comissária da Igualdade da Comissão Europeia, promoveu um guia de linguagem inclusa para os seus funcionários, que entre outros disparates recomenda extirpar a palavra “Natal” porque nem “todo o mundo é cristão”. Cada vez é mais difícil descobrir sinais de vida inteligente nestas elites que se governam e fingem governar os povos. Razão teve Merkel quando, ao dizer adeus à chancelaria, pediu para escutar “Du Hast den Farbfilm Vergessen” da cantora punk Nina Hagan que, em 1974, contava a sua frustração após regressar de umas férias num sítio turistíco na antiga RDA e perceber que o namorado Michi tinha levado um rolo a preto-e-branco porque no país era difícil encontrar película a cores. Punha o dedo na ferida: vivia num mundo cinzento e sem sonhos. Como parecemos viver agora.

Este conteúdo é exclusivo para assinantes, faça login ou subscreva o Jornal Económico