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A modernidade de António Ferro

É impossível ficar indiferente a António Ferro. À sua escrita, à sua capacidade de ler o mundo, à sua forma de moldar uma cultura às suas ideias.

É impossível ficar indiferente a António Ferro. À sua escrita, à sua capacidade de ler o mundo, à sua forma de moldar uma cultura às suas ideias. Mas tudo, na sua vida, são relâmpagos fulminantes. Há momentos cruciais na sua vida veloz: na “Teoria da Indiferença”, que escreveu em 1920; ou numa frase que ecoa da peça de teatro “Mar Alto” (“E eu quero combater sempre para que o ritmo da vitória não abandone a minha vida”); ou mesmo, depois de ter sido o mais sólido modernista, abandonou esse universo, e disse em 1934: “Esse fui eu, mas não sou eu!” Por essa altura já António Ferro começara a aplicar na prática a sua “Política do Espírito” ao serviço de Salazar, no Secretariado da Propaganda Nacional e, depois, no SNI. Talvez por isso - esta ligação ao salazarismo - a sua combatividade cultural e capacidade criativa tenham sido silenciadas, tornando-o um homem sem terra e sem passado. Nada de mais errado.

Muitos quiseram ser a reincarnação de António Ferro. Ninguém o conseguiu. Este livro que recolhe parte da “Ficção” de Ferro, é um bom início para conhecermos melhor a sua obra, espalhada por livros, jornais e revistas e pelo teatro. Pilares daquilo que pensava ser uma ideia de Portugal. Ferro cruzou-se com as vanguardas artísticas que nas décadas de 1910 a 1930, anos de descrença, guerra e demolição de valores e criação de outros, criaram um novo olhar sobre o mundo: de França, Alemanha ou Itália sopravam os ventos do cubismo ou do futurismo. Dos Estados Unidos vinha o jazz. Contra a tradição cultural tentava erguer-se uma “nova arte” e, para isso, era preciso destruir tudo, para tudo criar do zero. E, nesse aspeto, Portugal estava perto da locomotiva e não nas carruagens da retaguarda. Os poetas do “Orpheu”, artistas como Almada Negreiros, Fernando Pesoa, Mário de Sá-Carneiro ou Amadeo de Souza Cardoso, faziam com que o país saísse do seu labirinto e pobreza cultural. Ferro percebeu essa modernidade e fez parte dela: desse mundo que substituía a “arte muda” pelo cinema. São os “loucos anos 20”, onde a velocidade do futurismo se cola à sua obra. “O cinema é o teatro do futuro”, escreve, porque o movimento é tudo.

Não por acaso as mulheres iluminam a forma como vê as mudanças sociais: “Batalha de Flores” é sobre a mulher moderna na Baixa lisboeta. Tudo é claro: “Ser de Hoje. Ser Hoje!... Não trazer relógio, nem perguntar que horas são. Somos a Hora!”. “Leviana”, novela em fragmentos, é também tudo isso. Escreve sobre o que se move a toda a velocidade e os seus intérpretes: os Ballets Russes, Marinetti, Camilo Pessanha, Gabriel d’Annunzio.

Ferro definira uma linha, expressada, através dos seus fabulosos jogos de palavras e aforismos: em 1917, falando numa conferência sobre cinema, diz: “a mentira é a única verdade dos artistas”. A cultura definia a política. Não por acaso Salazar diria muitos anos depois: “A verdade vêem-na os olhos”. Na altura, Ferro quer que Portugal esteja no pelotão da frente da Europa. “A Idade do Jazz-Band” reflete todo esse sentimento modernista: a cidade comercial, de montras e automóveis, em constante movimento, atira-o para os braços do futurismo.

É o mundo das cidades do pós-guerra que Ferro elogia, sem disfarces. Contra a rotina, Ferro é a irreverência.

Esta é uma excelente edição para quem quiser começar a conhecer a obra de António Ferro. Com uma muito interessante introdução de Luís Leal, traz-nos “Teoria da Indiferença”, “Leviana”, “Batalha de Flores”, “A Amadora dos Fenómenos” e “Duelo de Morte” e “Suicídio”. Ler tudo isto é perceber a sociedade em movimento.

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