A Comissão Técnica Independente (CTI) considera que ainda existem muitas etapas de negociação no projeto de construção do novo aeroporto e que ainda existe muito tempo para Estado e ANA chegarem a acordo para o Campo de Tiro de Alcochete (CTA), se esta vier a ser a localização escolhida pelo próximo Governo.
Em entrevista ao Jornal Económico, Maria do Rosário Partidário, a coordenadora da CTI diz que contrato assinado em 2012 pelo Governo de Passos Coelho e os franceses da Vinci "está mal desenhado", "desequilibrado a favor do concessionário, perdendo o concedente". Raquel Carvalho, especialista jurídica da CTI, também responde a algumas das questões nesta entrevista.
O Governo anunciou que não vai esperar pela ANA e que vai impor as obras. Faz sentido esta decisão?
Absolutamente. Já devia ter sido feito. Um dos problemas, realmente, é que o Estado acabou por não acompanhar tão de perto como devia o contrato de concessão.
Tem havido falta de coragem do poder político para enfrentar a ANA/Vinci?
Não sei, talvez...
Talvez, mais para o sim?
Não estamos a falar de nenhum Governo em particular. Já houve vários desde 2012. Se falarmos de poder político em geral, sim, não apenas especificamente o Governo que neste momento está em funções, porque o contrato de concessão com a ANA não foi assinado por este Governo. Houve várias mudanças governativas desde 2012, independentemente do partido ou da liderança política do Governo. Houve várias fases. Se me perguntar do ponto de vista do poder político, aí sim, talvez eu possa dizer que sim. Pode ser um pouco falta de coragem, ou podem ser outras razões.
Chegou a alguma conclusão sobre a que é que se deve essa falta de afirmação do Estado perante um investidor privado?
Talvez as mesmas razões pelas quais andamos há 50 anos para tomar uma decisão. Falta de coragem de assumir, de se afirmar, que, aliás, é um problema nacional. Quando as pessoas acham que isto é um projecto megalómano. Não é. Nós temos capacidade e é preciso que as pessoas se mentalizem. Talvez no contrato de concessão haja um pouco essa perspetiva por quem o concebeu, de que somos um país medíocre no extremo da Europa. Mas isso é muito mau porque não somos. E devemos afirmar que não somos. Temos muita capacidade, tanto dentro quanto fora. Só precisamos de ter coragem política para avançar.
O Jornal Económico noticiou, com base na projeção de fontes, que se o Estado optar pela opção Alcochete, a ANA/Vinci tem direito a receber até 5 mil milhões de euros, isto porque, este rumo, escolher a opção Alcochete, implicaria o fim da concessão da ANA.
Raquel Carvalho (RC) - Essa conclusão não resulta dos nossos estudos. Neste momento, retornámos ao procedimento que no contrato se chama o procedimento do NAL [Novo Aeroporto de Lisboa]. A opção CTA Alcochete encontra-se dentro daquilo que nós chamamos a constrição territorial, dentro dos 75 quilómetros que protegem a exclusividade da concessionária e o concedente abrindo este procedimento do NAL, proporá à concessionária que seja esta a opção de desenvolvimento da expansão aeroportuária.
Grande parte deste contrato está desenhado para garantir dentro da constrição territorial dos 75 quilómetros, que a concessionária tenha vários caminhos para exercer o direito de opção. Ainda pode desencadear um outro mecanismo, que é a alternativa da concessionária até à celebração dos contratos vinculativos no procedimento do NAL ou nos seis meses, quando é pedido o relatório inicial, ainda que isso dependa da demonstração de alguns requisitos contratuais que estão previstos no contrato. Qualquer uma destas soluções da alternativa da concessionária, que o contrato não regula procedimentalmente como regula o procedimento do NAL, conduzirá naturalmente a uma bonificação do contrato e, nos termos gerais, qualquer modificação do contrato conduzirá a um reequilíbrio financeiro.
As soluções de resolução do contrato são resoluções limite que se colocarão se de todo em todo se verificar aquilo que se chama o termo da opção, onde dá-se a possibilidade de o concedente, e isso está expresso no contrato, optar, dentro ou fora dos 75 km, uma vez que acabou a opção da concessionária. E esse termo de opção, a alternativa do concedente, pode fundamentar uma de duas coisas: ou uma resolução do contrato ou uma modificação do contrato existente para incluir ou excluir a nova infraestrutura do contrato e, eventualmente, fechar o Humberto Delgado. Mas repare onde nós já estamos, já estamos no termo da opção e na alternativa do concedente. Já vamos aí muito à frente. Se chegarmos a esse momento, o concedente deve notificar a concessionária de que poderá, digamos assim, avançar para uma situação com terceiros, mas pode ainda negociar um acordo de modificação com a concessionária. Pode tentar essa via ou pode resolver logo o contrato com a concessionária. E então assim, se ele resolver o contrato nesse caso, a cláusula 51, que desde logo diz que os efeitos desta resolução tem que esperar que a nova infraestrutura comece a funcionar, porque senão ficávamos sem aeroporto. E depois de facto, conduz uma indemnização que é calculada nos termos da cláusula '62.7.e. Ou então, se houver uma negociação para modificação e eles não chegarem a acordo, então avança-se para a resolução e então também pode haver o mesmo tipo de indemnização, que parece-me de facto avultada.
O contrato permite, em primeiro lugar, mesmo que seja o procedimento do NAL, os prazos são bastante longos, mas eles não têm de ser esgotados. Eles estão previstos exatamente para que cada parte possa ter o seu tempo de ponderação. Por um lado, a concessionária para ver as características técnicas e fazer as suas ponderações de proposta, como para o concedente ter também tempo para ver o que é que é proposta.
Até porque o próprio procedimento ainda permite ajustes, permite negociações, permite que a concessionária possa eventualmente fazer alguns ajustamentos. Tudo isso demora tempo, como é absolutamente compreensível numa infraestrutura desta magnitude e com este valor. O contrato é extremamente complexo, e é talvez precipitado dizer se que se o Estado, o concedente, seguir a nossa avaliação e optar pelo CTA Alcochete que isso vai significar - se a concessionária não quiser - uma resolução do contrato. Acho que é saltar muitas hipóteses de negociação, de conciliação. Parece que quer o país, por um lado, quer a própria concessionária, não têm interesse nisto. Porque um cenário de resolução é um cenário absolutamente disruptivo que desaconselhamos, porque este contrato de concessão não trata apenas do aeroporto da Portela, mas de todos os outros como o Porto, Faro, os Açores e tem uma ligação umbilical também ao Contrato Aeroportuário da Região Autónoma da Madeira. É um cenário absolutamente disruptivo e que não é do interesse nacional de todo, nem da própria ANA.
No caso de haver lugar a alguma indemnização a alguma estimativa de quanto é que é que seria?
RC - Não temos alguns dos dados que compõem os fatores de cálculo da indemnização. Havia dimensões, fatores de cálculo que estão no artigo '62.7.E' a que não tivemos acesso. Não pudemos fazer esses cálculos. E depois isso também depende muito do momento em que ocorre. Apontamos que seria por essa via porque é isso que resulta do contrato de concessão. É de facto uma indemnização calculada como se existisse um incumprimento do concedente que é normalmente a indemnização mais avultada que está prevista nos contratos desta natureza.
Parece-me desde já muito precipitado, porque ainda há muitas hipóteses de chegarem a acordo e de negociação que me parece, como em tudo no mundo do direito, uma solução negociada é sempre muito melhor. E, neste caso em particular, já estamos há imenso tempo à espera de uma solução para o aeroporto de Lisboa da região de Lisboa. Um litígio que significa uma resolução contratual desta magnitude não é bom para o país de todo, não é bom para o problema que estamos a tentar resolver, não é bom para a concessionária, não é bom para ninguém.
Poderia manter-se a concessão, com todos os restantes aeroportos do contrato, menos do novo aeroporto de Lisboa?
RC - Isso é uma hipótese de modificação que conduz a um reequilíbrio financeiro. Só que, enfim, eu não consigo contabilizar. Mas diria que o aeroporto de Lisboa é a jóia da coroa. Porque a partir do termo da opção, qualquer um deles pode resolver o contrato. E, portanto, naquele cenário que eu disse que entrou em negociação e depois pode haver resolução. Isto é uma opinião, uma análise não científica: num contrato em que sai a jóia da coroa, não sei até que ponto é que a concessionária manteria interesse em ficar com os demais. Dito isto, ao abrigo do contrato e de forma absolutamente límpida, a partir do termo da opção, ou para lá dos 75 quilómetros, não há incumprimento contratual por parte do concedente E se o concedente entender manter na esfera pública a exploração aeroportuária, a ANA não está excluída de se apresentar num procedimento concursal. Só porque é concessionária e um determinado contrato termina, a empresa não fica vedada de concorrer em igualdade de circunstâncias, desde que não seja assegurado que não há nenhuma posição especialmente dedicada a quem já foi concessionário. Isso normalmente é acautelado. Ao abrigo do direito da concorrência, pode perfeitamente concorrer. Se for essa s opção.
Se optasse por não construir o novo aeroporto, a ANA teria direito a alguma compensação?
RC - Se houver resolução do contrato nos termos que eu lhe descrevi há direito a indemnização. Porque a operação AHD pode fechar. E fechando, essa é a jóia da coroa, resolve-se o contrato.
Os acordos que antes existiam caducaram. E foi a própria ANA que comunicou ao concedente isso mesmo, os do Montijo, isto em abril de 2021. Acabou, deixou de produzir efeitos. Nesse sentido, não se vai poder agora ir recuperar só uma coisa que caducou.
O presidente do conselho de administração da ANA rejeita investir mais de 1,2 mil milhões de euros no novo aeroporto isto tem em conta que seria feito para o Montijo. Vão ser os contribuintes a pagar a fatura?
Maria do Rosário Partidário (MRP) - Um aeroporto tem um nível de rentabilidade que permite pagar-se a si próprio. É evidente que é preciso haver uma bolsa de arranque. Aquilo que faz parte da estratégia que aconselhamos é que aquilo que iria ser investido no Montijo pela ANA seja investido numa primeira pista no CTA Alcochete, a nossa sugestão, poderia ser em Vendas Novas, mas não faria tanto sentido. Não há uma razão objetiva para a ANA dizer que só tem dinheiro se for no Montijo, e que se for na CTA não tem. Mesmo que seja esse valor que está estimado. Agora, não conhecemos o orçamento da ANA para o Montijo, nem o cronograma, não fazemos ideia porque a ANA não nos forneceu. Não sabemos o que é que eles estão a considerar.
O PCA da ANA também disse publicamente que o Estado tem de decidir se quer gastar 8 mil milhões de euros num aeroporto maior do que o de Frankfurt ou de Heathrow. E que, mais uma vez, serão os contribuintes a pagar esta fatura que considera avultada, disse José Luis Arnaut. Como é que olham para estas declarações?
MRP - Especulativas. Os oito mil milhões de euros, o valor total, é para 20 anos. Começa com uma pista, depois passa para a segunda pista. Entretanto, começa a produzir receita. E como vai produzir receita não são os contribuintes que vão pagar. claro que tudo depende da forma como o contrato está estabelecido ou como vier a ser eventualmente modificado.
Neste momento, a receita que é produzida pelo Aeroporto Humberto Delgado foi até ao ano passado inteiramente da ANA. Só agora é que a ANA começou a pagar 1% ao Estado sobre as suas receitas.
Nós dizemos que o contrato está desequilibrado a favor do concessionário, perdendo o concedente. O contrato está mal desenhado.
Dez anos sem pagar nada ao Estado?
Até agora não pagaram nada. São as partilhas. Se tivesse havido uma maior participação do concedente nos lucros do aeroporto, se calhar havia mais disponibilidade para investir no novo aeroporto e já não precisavam de ser os contribuintes. Podia ser o próprio aeroporto a pagar-se a si próprio. Justamente. O contrato foi assinado em 2012. Alguém o desenhou dessa maneira.
O Governo em 2012 defendeu mal o Estado português?
MRP - O contrato está mal desenhado. Por isso é que destacamos o contrato de concessão como um dos objectos desta avaliação.
RC - É a cláusula 2, partilha de receitas. Em crescendo, 1% da receita bruta da concessão entre o 11.º ano de concessão e o 15º. Depois, 2% do 16.º ao 20º ano. E só 10% entre o 41.º e o 50º ano da concessão.
MRP - Isto é a galinha dos ovos de ouro. E o Montijo ajuda a manter a galinha dos ovos de ouro.
E vai ser fácil tirar o ANA do aeroporto de Lisboa? Vão ter que dizer-lhes para construir o novo aeroporto e depois irem para a Margem Sul do Tejo.
MRP - Eles não querem. Agora, a questão é que não há só a ANA e o negócio do aeroporto, há outros valores, mais altos. Por isso é que eu tenho insistido que os objetivos são distintos. Os objetivos da ANA são muito claros. E os objetivos nacionais também são muito claros.
RC - É evidente que a concessionária tem em vista o seu lucro e isso é perfeitamente legítimo. Mas uma concessionária de um serviço desta natureza, quando se presta a ser concessionária, está no fundo, a concorrer para a prossecução do interesse público. Isto não é exatamente um negócio privado que se faz com o Estado. É um negócio naturalmente legítimo, comm intenção de lucro para a concessionária, mas está a explorar um serviço público. E o interesse nacional que o concedente defende nesta concessão, de alguma maneira, está partilhado com a concessionária quando ela se torna concessionária. Também isso deveria pesar na ponderação daquilo que vai ser depois o futuro que já não será com a CTI.
O anterior secretário geral das Infraestruturas, Hugo Mendes, mencionou numa entrevista que havia a bomba atómica: o Estado chegar ao pé da ANA, pagar, e voltava a gerir a concessão. O Estado deve acionar a bomba atómica se for necessário?
RC - Juridicamente, tem que cumprir o contrato. Isso é um extremar de posições.
MRP - Se o contrato estivesse de outra maneira não havia esses triggers tão raros.
A construção na totalidade do projecto de Alcochete será sempre pago pela concessionária. É isto que dizem os contratos?
RC - O contrato prevê que a expansão aeroportuária seja feita no âmbito do contrato. O estudo que fizemos da necessidade de financiamento diz que não é preciso financiamento público. A questão da expansão está prevista no contrato ser negociada com a concessionária.
MRP - O não ser preciso financiamento público tem que ver com a rentabilidade do aeroporto. Não tem que ver com necessariamente ser a concessionária que vai assumir todo o investimento.
Em teoria, o futuro governo poderia chegar lá e dizer ´'pagamos 50%, vocês pagam os outros 50% ou ou nós damos dinheiro de entrada e depois recebemos através do de uma taxa qualquer'. Isso é tudo possível, certo?
MRP - Sim, claro, Mas isso faz parte das negociações. E aquilo que recomendamos é que, de facto, quer dizer, se tente resolver para já. Não faz o menor dos sentidos que este processo se prolongue só por causa da negociação ad eternum entre o Estado e a ANA ou entre o concedente e o concessionário. Não faz sentido.
O Estado poderia avançar para a concessão do novo aeroporto sem ter acordo com a concessionária?
MRP - Sim, mas a questão é que dentro da dentro dos 75 km está estabelecido que tem que estar de acordo. Se fosse Santarém, por exemplo, que está fora dos 75 km, o Estado podia avançar.