O que acontece quando se viaja para sempre mas não se consegue ir a lado algum? Quando não se foge e nos limitamos a circular dentro de fronteiras fechadas, mas isso serve para nos conhecermos melhor e aos outros? São essas questões, incendiáriasque nos coloca Ulrich Alexandrer Boschwitz num daqueles livros, “O Passageiro”, que descodificam uma era. Ou várias eras. Ao contrário do seu personagem, Boschwitz conseguiu sair da Alemanha nazi. Mas acabou por ser internado com outros refugiados na ilha de Man e deportado para a Austrália, onde foi de novo internado num campo. Quando regressava finalmente a Inglaterra, morreu quando o barco onde seguia foi torpedeado por um submarino alemão. Há algo de trágico em toda esta fuga circular, mas alguns livros parecem a outra face da vida dos autores. E é isto que, de alguma forma, aqui acontece. A personagem central é Otto Silbermann, um negociante de sucesso em Berlim, que se vê num mundo a colapsar após a noite dos cristais de 1938, quando os judeus são alvo das SA. Não há nada de visível no seu aspeto que o identifique como judeu, segundo nos conta. A sua mulher não o é. Mas a pressão sobre ele torna-se imensa. Surge na forna de violência, quando agitadores batem à sua porta, forçando-o a fugir e a tentar conseguir dinheiro, seja a vender o apartamento ou a parte do negócio que construiu. Mas neste novo mundo não há lealdades ou amizades. Cada um é por si.
Silbermann é um homem em fuga. E entra e sai de comboios que atravessam a Alemanha em busca de um ponto de escape, chegando a tentar atravessar de forma ilegal a fronteira até à Bélgica. Onde não o deixam entrar. Rapidamente deixa de ter um destino: viaja, mas já nem sabe para onde. Escondendo-se através da sua aparência ariana, tem receio de que alguém veja os seus documentos, mas o que o cerca é claustrofóbico. Como se Kafka estivesse aqui presente. “Ninguém resiste”, lamenta-se Otto. Vê a cumplicidade de milhões com o novo poder, porque tudo se passa defronte deles e ninguém faz nada. A tentação do dinheiro e o aproveitamento dos que estão desprotegidos é particularmente clara quando Otto conta as suas negociações com Becker, o seu lugar-tenente na empresa, um alemão, que se socorre das leis que tornam impossível que um judeu possua um negócio, ou com Findler que quer comprar a sua casa por um preço de saldo. No mundo de Otto o nível social ou riqueza já não significam nada. Ele é um homem perseguido. Na sua viagem sem destino pela Alemanha encontra-se com pessoas que conhece, com desconhecidos, com outros fugitivos. Está em constante movimento. E este não é um conto de fadas. Ele não tem um plano. Pensa só que tudo aquilo não está a acontecer. Mas está. O relato é poderoso e confronta-nos com o que é na realidade o ser humano.
Os seus alvos não são apenas os nazis, mas os países livres, que fecham as portas a quem quer fugir. Para onde ir, questiona-se. Não há sítio para o receber. Esta história tem um eco particular neste nosso mundo de migrantes. O livro acaba por não ser datado, como poderia parecer. É transversal aos tempos. Porque as sociedades, no fundo, pouco mudam. n