Com a candura que se lhe reconhece, o doutor Siza Vieira veio sossegar os inquietos portugueses. Em Portugal há um Pai Natal. Disse ele: “não vai faltar bacalhau no Natal”. Haverá assim, na consoada, bacalhau com todos, bacalhau espiritual, bacalhau à Gomes de Sá, ou bacalhau à Rendeiro. Os portugueses podem estar tranquilos. Os preços podem subir, acrescentou, mas isso é uma inevitabilidade: quem tiver dinheiro come bacalhau, quem não tiver contente-se com as espinhas e o aroma. O discurso do doutor Siza Vieira não destoa do que se escutava em 1971, quando o que era preciso era garantir o fiel amigo para que a Brigada do Reumático se mantivesse de pé. O bacalhau é o nosso fiel amigo. Tal como o doutor Siza Vieira, e, claro, o PS. Esta relação entre os portugueses e o bacalhau foi descrita por Eça de Queiroz: “Os meus romances no fundo são franceses, como eu sou em quase tudo um francês – excepto num certo fundo sincero de tristeza lírica, que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada.” Pelo bacalhau até se pode confiar que os portugueses acreditam que o país vai mudar.
Portugal deve aproveitar este momento patriótico para nomear o doutor Siza Vieira para um Óscar de Hollywood pelo seu papel de Pai Natal. Ou de Fiel Amigo. Não há muitas oportunidades como esta. Pode aproveitar para candidatar também o doutor João Rendeiro para melhor ator secundário e, para melhor argumento original, o filme “As listas de deputados - sempre as mesmas desde 1870”. Para os efeitos especiais pode-se candidatar a telenovela “Combate à Corrupção - Temporada 30”. Há condimentos para todos: conspirações, princesas sem príncipes, unicórnios e tricórnios, empresas e famílias endividadas, serviços de saúde públicos sem dinheiro, música pimba, tiros e um fim, lacrimejoso, de mão estendida à Europa. É o nosso “o dia da marmota”.
Este é o sítio dos fiéis amigos. Por exemplo, o doutor Fernando Medina foi humilhado nas eleições para a Câmara Municipal de Lisboa. Como recompensa pelos serviços prestados, o doutor António Costa doou-lhe o quinto lugar na lista de deputados por Lisboa, podendo assim ser eleito sem problemas e almejar ser o próximo ministro das Finanças. E assim poder dar mais ou menos oxigénio à CML. É assim que se recompensam os fiéis amigos: com bacalhau espiritual. Nada que não faça o doutor Rui Rio: bacalhau para a ceia dos fiéis, tremoços para os que, mesmo não tendo lutado contra ele, se abstiveram. Há dúvidas? A política partidária é assim: glória aos vencedores. Ai dos vencidos. Os partidos menos poderosos fazem o mesmo. Basta levantar a cara do prato de bacalhau escolhido e olhar à volta.
A comunidade dos fiéis amigos está assente nos subsídios da Europa. Que irão sendo usados como lenha, da mesma forma como os irmãos Marx queimavam os vagões para alimentar a locomotiva. “Mais madeira!” é o único grito que se escuta nos fiéis amigos do poder. Com a inflação a aquecer, o BCE a dar os primeiros sinais que poderá deixar de comprar dívida nos valores conhecidos e os juros a ameaçarem subir, e um novo ministro das Finanças alemão que é devoto da austeridade crua, nada como distrair os cidadãos com filmes de comédia. A melhor entre todas elas chama-se “combate à corrupção”. Como boa argumentista, a Assembleia da República fez de Pai Natal à altura e aviou mais umas linhas para a combater. Nada, como é evidente, que vá evitar a fuga dos condenados, os anos de julgamento em tribunal (com recursos sobre recursos), os megaprocessos que, por serem tão grandes, ninguém leu e não levam a nada. O doutor Rui Rio, com a sua notável capacidade para errar nos momentos mais errados, conseguiu vir escrever que: “Pelos vistos, o azar de João Rendeiro foi haver eleições em Janeiro”. A questão é outra. O doutor Rendeiro fez parte do clube dos fiéis amigos e comia bacalhau com talheres de ouro; teve direito a que a mulher ficasse a guardar as obras de arte e vida fácil após a condenação. Mas o doutor Rendeiro, pela forma como gozou com os portugueses, com a justiça e o país onde nasceu,
tornou-se um incómodo. Todos se sentem vítimas das tropelias do doutor Rendeiro. Deixar passar isso em claro não é uma questão de eleições. É de lógica. Até porque por vezes é preciso imolar um cordeiro nos micro-ondas televisivos para que os fiéis amigos do poder continuem a comer o melhor bacalhau.
Enquanto isso o país, sem se aperceber, definha. Segundo o Eurostat. Portugal ainda está três pontos abaixo da média dos 27 países da UE face ao quarto trimestre de 2019 (antes da pandemia). A Grécia ou a Eslovénia estão um ponto acima e a Estónia está cinco pontos também acima. Só a Espanha está pior. Como vai ser possível conciliar o crescimento iniciado com o fundo de recuperação com contas públicas sólidas é o velho dilema. Mas vai ser o destino nacional muito em breve.
O doutor António Costa, que sabe como poucos como se é Pai Natal, disse agora aos seus fiéis amigos do partido que é preciso é “recuperar da pandemia” e “podermos dar o salto em frente”, se é que alguém sabe o que isto é. Talvez seja aquilo que a espanhola Lola Flores recomendava a um filho: “quando te vires à beira de um precipício, dá três passos atrás”. Não parece que essa seja a estratégia dos fiéis amigos do bacalhau. Alguém pagará a austeridade.