O que é que o passado e o futuro podem ter em comum? É esse o grande desafio que Anthony Doerr nos faz num dos mais estimulantes romances editados este ano, “Uma cidade nas nuvens”. É tudo ao mesmo tempo - ficção histórica, conto de fadas e ficção científica. Através de cinco personagens principais que gravitam em torno de períodos diferentes, Doerr não nos traz um livro fácil. É preciso algumas vezes parar para recuperar o fôlego e, também, o fio à meada. Porque a história é um enorme jogo de peças que se vão encaixando, a pouco e pouco, nas outras. Tudo se baseia num livro fictício de um filósofo real, António Diógenes, “Nefelocuculândia (“Cloud Cuckoo Land” no original), dividido em manuscritos que sobreviveram ao tempo por causa do efeito que tiveram nas pessoas que com eles contactaram e, no caso, com os cinco personagens principais. Diógenes escreve: “Talvez outrora os homens de facto caminhassem sobre a Terra como animais e uma cidade de aves pairasse no céu entre o reino dos homens e o dos deuses”. Talvez.
O livro apresenta-nos Zeno Ninis, um sobrevivente da guerra da Coreia na década de 50 e um entusiasta de literatura com 86 anos que escreveu uma peça que está a produzir com estudantes numa biblioteca de Lakeport, Idaho. Mas, no exterior, Seymour Stuhlman, que tem uma arma e uma bomba escondidas, está num momento crítico, desiludido com o desenvolvimento imobiliário que ameaça a floresta, o único santuário local que o protege do ruído urbano. Prepara-se para atacar a biblioteca. Dali Doerr transporta-nos depois para uma Constantinopla que, em 1453, está prestes a sucumbir às mãos do Império Otomano. Dentro das paredes da cidade trabalha uma jovem de 13 anos, Anna, que faz roupa para padres. Mas ela aprende a ler o grego antigo e sabe roubar manuscritos vendendo-os a seguir a italianos de Veneza que tentam salvar pedaços da literatura mundial. É assim que descobre um livro de Diógenes. Fora das muralhas está Omeir, um rapaz colocado ao serviço dos otomanos. Acabarão por se encontrar depois. Mas depois Doerr transporta-nos para o século XXII, onde outra adolescente, Konstance, vive numa nave, a Argos, que faz uma longa viagem espacial que dura há gerações. Fugindo da Terra, que está a morrer.
No meio das inovações tecnológicas, dos canhões otomanos que permitem perfurar as muralhas de Constantinopla, até à Inteligência Artificial que guia a nave espacial, há no entanto um poder superior: os bibliotecários, que tal como as bibliotecas que gerem, têm a resposta para todas as questões que os personagens querem ver respondidas. Ajudam as almas perdidas a encontrar um sentido para a sua existência através das tragédias gregas e da possibilidade de a redenção se concretizar. Memórias escritas e não dispersas digitalmente, que podem ser apagadas ou alteradas.
A capacidade maior de Doerr é construir ligações entre séculos como se pacientemente estivéssemos a ver uma teia de aranha a ser formada à nossa frente. E onde entendemos que tudo tem a ver com tudo. Onde os desafios do crescimento como seres humanos são como pedaços de um quadro que se vai construindo (ou destruindo) com o tempo. “Uma cidade nas nuvens”, não nos enganemos, é um livro sobre o amor às librarias e à natureza e sobre o desdém às tecnologias que prometem a salvação (embora seja fascinante a forma como descreve a construção de um canhão descomunal às portas de Constantinopla). Ele que servirá para destruir o conhecimento armazenado por um poder que outrora fora imenso. Aqui não há heróis ou vilãos, só acontecimentos fortuitos. É essa simplicidade que nos comove e, ao mesmo tempo, nos permite ir construindo o verdadeiro puzzle que é este livro. Onde percebemos melhor o que é a perda destas heranças, tal como foi o desaparecimento de centenas de peças de teatro escritas pelos gregos no século V antes de Cristo. Sobreviveram 32. A transmissão escrita do conhecimento é uma joia que deve ser preservada. As bibliotecas públicas, onde se guarda o conhecimento, são a nossa alma. Essa é a lição maior que Doerr nos lega.