Perdoar ou vingar? Ajustar contas ou seguir em frente? “O regime já caiu”. Palavra de Jafar Panahi, referência incontornável do cinema contemporâneo iraniano. E universal, porque as suas histórias retratam a Humanidade, que naquela geografia enfrenta a repressão e uma vigilância sufocante. Arriscamos dizer que é neste universalismo que se constrói a obra de Panahi – na dor, no humor, na coragem de fazer cinema. E de fazer este filme em particular. O mais gritantemente político. Não temos a veleidade de fazer crítica de cinema. Apenas queremos dar nota daquilo que o realizador partilhou na sua breve passagem por Portugal, na sessão de antestréia, segunda-feira, 10 de novembro, no cinema Ideal, em Lisboa.
Que não haja equívocos. “Foi só um acidente”, o seu novo filme, Palma de Ouro em Cannes, “não fala sobre vingança”, sublinha Panahi numa voz pausada. “Esse é um assunto que está apenas à superfície. Oque me interessa é o que vai acontecer”. E questionar. Que moralidade temos em fazer mal a alguém que nos fez mal? As personagens, que sofreram a tortura na prisão, questionam-se sobre o que fazer com o carrasco. A dúvida instala-se. A angústia também. Do que somos capazes quando a fúria nos cega?
Panahi foi detido pela primeira vez em 2010 e impedido de viajar e filmar. Se antes a sua câmara apontava para fora, desde então passou a focar-se nas suas vivências. Mais ainda depois de estar preso uma segunda vez, de julho de 2022 a fevereiro de 2023. Agora que já não pende sobre ele qualquer acusação – “ao fim de 18 anos”, frisa perante a plateia –, o caminho teria de ser o mesmo de sempre. Resistir. “Retratar a sociedade onde vivo”. Porque “é no coração da crise que temos de trabalhar”. Sem dar tréguas aos algozes. E como se filma num contexto destes?
Panahi não se furta à pergunta. “Reduzindo o número de pessoas envolvidas. Uma equipa de filmagem mínima, câmaras mais pequenas...”. Lugares onde não dão nas vistas, acrescenta o cineasta antes de rasgar um sorriso. A dada altura, quando alguns dos personagens estão junto a uma máquina multibanco – há uma cena no filme em que têm de levantar dinheiro –, foram abordados por 15 agentes à paisana. Oresto da equipa correu a esconder o equipamento. A tradutora segue, atenta, as palavras de Panahi, que falou em farsi. O realizador sorri ao contar o episódio. Não vergar. Sorrir e filmar. Apetece dizer, gracejando: “Foi só um acidente”.
Na verdade, a sucessão de pequenos acidentes e coincidências transforma-se num pesadelo. A ação vai percorrendo cenários e situações cada vez mais absurdas — desde hospitais onde se pedem “presentes” usando caixas de doces a seguranças que solicitam, descaradamente, subornos por pagamento contactless de montantes (adivinhamos) também eles absurdos — sem nunca esmorecer na crítica feroz ao sistema. Com a corrupção normalizada, mal disfarçada por códigos de aparente civilidade, o cidadão comum procura sobreviver à distorção do quotidiano.
Mas Panahi acredita que algo mudou. O movimento ‘Mulher, Vida, Liberdade’ “virou uma página na República Islâmica do Irão”. E isso “não aconteceu porque o regime deixou, mas porque os iranianos quiseram.”
O colapso ético de um país
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Comédia negra, denúncia de um regime que tudo sufoca. O mais recente filme do iraniano Jafar Panahi não pugna pela vingança nem pela violência. Éum gesto de resistência. Uma vez mais.