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Indústria de curtumes em guerra com Câmara de Alcanena

Resgate da concessão de uma ETAR pode colocar em risco fileira que gera mais de 300 milhões de euros, exporta 65% e emprega três mil pessoas.

A indústria nacional de curtumes valia cerca de 300 milhões de euros no final de 2016, mas os dados dos anos mais recentes, ainda não fechados, deverão evidenciar um crescimento constante. A acompanhar essa evolução está o ritmo de expansão das vendas na frente externa. Em 2014, esta indústria atingiu uma quota exportadora direta superior a 35%, o que traduziu uma multiplicação por sete face aos 20 anos precedentes. Um ritmo alucinante que se prolongou de 2014 até aos dias de hoje, em que a quota de exportação desta fileira industrial já deve rondar os 60%.
Quem fala em indústria de curtumes em Portugal, fala obrigatoriamente de Alcanena, onde se concentra 90% do ‘cluster’, que no nosso país equivale a cerca de 65 empresas, empregando, de forma direta e indireta, cerca de três mil pessoas. E é tudo isto que a APIC – Associação Portuguesa da Indústria de Curtumes diz estar em risco com a decisão da Câmara Municipal de Alcanena (CMA), de resgatar a concessão da ETAR – Estação de Tratamento de Águas Residuais industriais do concelho e transferi-la para uma empresa municipal, a Aquanena.
Em causa está o impacto negativo que esta medida pode trazer à fileira nacional do couro – calçado, têxtil, transportes, moda e mobiliário, com cerca de duas mil empresas, responsáveis por 45 mil postos de trabalho em Portugal e um volume de negócios que ronda os 2.600 milhões de euros anuais.
Cientes do grande impacto ambiental da indústria de curtumes, nomeadamente os elevados níveis de poluição no rio Alviela, firmou-se em 1987 um protocolo entre o Estado português, a autarquia de Alcanena e os industriais da fileira. Foi então constituído o ‘Sistema de Alcanena’, assumido pelo Estado, e transferido depois para a CMA, que estabeleceu depois um contrato de concessão com os industriais do sector, uma associação designada AUSTRA.
Tudo começou a mudar em fevereiro passado. A 7 de fevereiro, a CMA decidiu resgatar a concessão da gestão da ETAR industrial à AUSTRA, mesmo sabendo que o prazo da concessão só termina em 2024. A primeira data prevista para a tomada de posse efetiva por parte da empresa municipal Aquanena estava prevista para 7 de junho passado, mas uma providência cautelar interposta pela APIC impediu esse objetivo de Fernanda Asseiceira, presidente da CMA no último mandato autárquico permitido pela lei.
Apesar de estar no final de mandato, Fernanda Asseiceira, já assumiu o seu cargo como presidente do conselho de administração desta nova empresa municipal, que pretende agregar a gestão das águas residuais industriais, com a distribuição de água de consumo e de águas residuais domésticas naquele concelho ribatejano. Declarou-se assim uma guerra jurídica, uma vez que a APIC já apresentou impugnações e interpôs outras ações principais contra os intentos da autarquia. Tudo porque a associação dos industriais de curtumes diz que este resgate coloca em causa a competitividade da indústria e alerta quanto ao facto de esta medida poder inverter a trajetória de aproximação do ‘cluster’ em direção ao topo do mercado europeu (5º do ‘ranking’) e mundial, fazendo retroceder a economia circular do setor. Ainda arrisca desmantelar um sistema ambiental histórico em Portugal e falhar no suporte competitivo que a fileira tem conseguido proporcionar ao dinâmico setor do calçado, por exemplo.
No caso da ETAR industrial, a CMA alega que a concessão à AUSTRA é ilegal, razão por que avançou com o referido processo de resgate.
“O que se passa é que, independentemente de qualquer justificação legal, esta é uma decisão política. A presidente da CMA encontra-se no seu último mandato e já se decidiu autoconstituir como a presidente da futura empresa municipal Aquanena, sendo acompanhada no respetivo conselho de administração por mais dois elementos do atual executivo camarário. Alegam que a empresa já tem visto do Tribunal de Contas para funcionar, mas esse visto, tal como o alegado estudo de viabilidade económica, assentam nos pressupostos de uma ETAR doméstica e não industrial. Por outro lado, ao querer juntar numa mesma empresa as águas de consumo e a gestão das águas residuais, domésticas e industriais, pensamos, que a intenção da CMA é aproveitar a fonte de rendimento da ETAR industrial de Alcanena para financiar as obras necessárias no sector das águas de consumo doméstico”, acusa Gonçalo Santos, secretário-geral da APIC, em declarações ao Jornal Económico.
O mesmo responsável sublinha que “o sistema AUSTRA é detido pelos fabricantes de curtumes de Alcanena”, acrescentando que “é um sistema que desde há 24 anos tem todas as fábricas de curtumes de Alcanena ligadas no que respeita à emissão e tratamento de efluentes industriais”.
“Esse sistema foi atribuído por concurso público até 2024. Só nos últimos cinco anos, os industriais do setor investiram cerca de 4,5 milhões de euros no sistema para proceder ao respetivo reequilíbrio financeiro”, relembra Gonçalo Santos, garantindo que se o resgate for por diante a APIC irá exigir uma indemnização de cerca de quatro milhões de euros à autarquia. E o secretário geral da APIC alerta: “a consequência de a Aquanena tomar posse da AUSTRA e depois não ter capacidade para tratar os efluentes industriais, é que teríamos de ser nós, as fábricas de curtumes, a pré-tratar os efluentes antes de chegarem à rede da Aquanena”. O Jornal Económico colocou várias questões à autarca Fernanda Asseiceira mas até ao fecho desta edição não obteve resposta.

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