"Patos desalinhados não voam", é o nome do livro da autoria de Hugo Mendes e Frederico Pinheiro, ex-secretário de Estado das Infraestruturas e ex-adjunto do então ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos.
Os dois faziam parte do gabinete do então ministro das Infraestruturas que em 2020 decidiu que renacionalizar a TAP depois do brutal impacto da pandemia no sector da aviação. Para tal, foi preciso apresentar um plano de reestruturação na Comissão Europeia que implicou a reestruturação da empresa.
Em entrevista ao Jornal Económico, Hugo Mendes e Frederico Pinheiro abordam as polémicas que envolveram a companhia aérea, criticam o volte-face de António Costa sobre a privatização, e defendem que a transportadora deve permanecer na esfera pública, não percebendo a pressa do executivo socialista em vender a empresa. A acontecer uma abertura de capital, deve ser gradual e sempre parcial.
A entrevista teve lugar a 7 de novembro, uma hora depois de António Costa ter apresentado a sua demissão do cargo de primeiro-ministro depois de ter sido revelado que estava a ser investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do caso Influencer que investiga o negócio do centro de dados de Sines.
Entretanto, Pedro Nuno Santos, de quem os autores do livro são próximos, anunciou a sua candidatura à liderança do PS com o objetivo de disputar as eleições legislativas de março, tendo de lutar com José Luís Carneiro para obter o bilhete socialista.
Começando pela atualidade. Como é que olha para esta crise do governo? Querem comentar?
Hugo Mendes: Não temos nada a comentar.
Vou começar pela pergunta que muitos portugueses fazem: porque é que o Governo não deveria ter deixado cair a TAP em 2020? Porque é que deve gastar 3,2 mil milhões de euros dos contribuintes portugueses nesta operação?
Frederico Pinheiro: Isso é uma resposta que o Governo nunca conseguiu transmitir devidamente, pelo menos, do ponto de vista emocional. Não é fácil explicar isso. O que nós defendemos no livro é que esse resgate foi importante por uma série de motivos. Primeiro, por causa do hub, do seu impacto económico, do impacto que isso tem na conectividade e na em toda a abrangência económica do do país. E depois dos empregos que assegura direta e indiretamente, das contribuições e da fiscalidade. Vemos que vários países a nível europeu, mas também mundial, fazem de tudo para segurar as suas companhias aéreas e principalmente, aquelas companhias aéreas que têm hubs intercontinentais, como é o caso da TAP, que é uma empresa única a nível europeu na ligação a África e ao Brasil.
Hugo Mendes: Eu acho que uma dimensão que o livro procura sublinhar é que muitas vezes as pessoas quando falam dos 3,2 milhões falam apenas do Estado accionista. Quando a TAP, sendo importante para a economia nacional e não apenas como uma empresa de transportes, temos que pensar também do lado da dimensão da estabilização macroeconómica e para e do desenvolvimento futuro do país. A TAP já começou a devolver dinheiro ao estado fiscal, não ao Estado acionista. A partir do momento em que ela, em que impedimos que ela desaparecesse. Isto é difícil de explicar. É difícil. É contra intuitivo. Nós compreendemos que não seja, que não seja facilmente apreensível pela população e que o discurso apenas em torno do Estado acionista, ou seja, o Estado que mete o dinheiro e que procura um retorno através de uma possível venda de capital ou pela ou pela ou pela devolução de dividendos futuros da empresa. Mas de facto, a empresa é de tal forma importante para a economia do país e encastrada na economia do país, que nós temos que olhar para o lado macroeconómico e para a importância da empresa para o desenvolvimento económico e para o estado fiscal.
No livro citam a própria Comissão Europeia, que disse em 2021 ser altamente improvável que uma companhia aérea conseguisse substituir a TAP ou assumir o seu papel na ligação de Portugal ao resto do mundo e aos países lusófonos. Esta é também uma um ponto que pode servir para a defesa da TAP pública?
Hugo Mendes: É um ponto certamente para para defender a existência da TAP. Em 2020, o que estava em causa? Era impedir que a TAP desaparecesse. E um dos motivos pelo qual é importante que a TAP desaparecesse era precisamente porque o modelo de negócio da TAP é difícil ou impossivelmente mesmo, seria replicado por uma nova companhia que pudesse vir a substituir a TAP. Isto é relativamente simples de perceber. Eu acho que é uma das mais valias do livro é explicar de forma calma e ponderada porque é que não podia haver uma companhia que substituísse a TAP. Isto prende-se com os slots. Normalmente costumamos ouvir muitas pessoas que claramente conhecem mal o mercado da aviação e acham que se uma empresa A desaparece aparece logo a empresa B, que havendo procura a empresa B vai necessariamente substituí la. Pode demorar mais ou menos tempo, mas havendo procura, essa empresa vai emergir. Ora, a empresa pode emergir e pode haver procura. Mas é preciso haver capacidade dessa empresa, dentro das regras do mercado da aviação, a poder afirmar-se. E se a TAP desaparecesse, aqueles slots que a TAP tem e que são estruturantes para o seu modelo de negócio, eles iriam ser ocupados por outras companhias com um modelo de negócio diferente. E, portanto, a TAP 2.0 nunca poderia replicar a TAP 1.0. Nunca poderia. Seria uma companhia necessariamente diferente, com um modelo de negócio diferente. E, desse ponto de vista, a grande mais valia que a TAP tem hoje para o país e para as ligações internacionais, desapareceria.
"Uma TAP 2.0 nunca poderia replicar a TAP 1.0" - Hugo Mendes
Frederico Pinheiro: Esse ponto da Comissão Europeia é muito relevante porque denota que a TAP tem uma importância crucial para a conetividade a nível europeu, ou seja, porque é reconhecido o papel insubstituível da TAP nas ligações à maior economia da América do Sul e nas ligações a cinco países africanos. E se nós partimos desse raciocínio, se vemos que se a própria Comissão Europeia reconhece esse peso da TAP e essa importância da TAP na economia europeia, por maioria de razão vemos que a TAP é importante para a economia portuguesa.
Sobre a questão dos países lusófonos e da diáspora, no livro argumentam que, de um ponto de vista financeiro, também será impossível fazer todas as ligações que toda a gente quer para para todos os pontos. Que seriam desejáveis para uma empresa pública de aviação ter. E dão o exemplo de António Costa a dado momento anunciar que a empresa vai voar para Milão a partir do Porto e para outros destinos. É este também um dos desafios que a empresa enfrenta ter esta pressão política de ter que cumprir este serviço público?
Frederico Pinheiro: O Governo, pelo menos enquanto estivemos lá, teve o cuidado de nunca ter nenhuma interferência em determinados assuntos, nomeadamente a rede, com a frota, com os trabalhadores e a rede. E é um assunto muito sensível que, obviamente, mesmo quando as empresas são privadas, os próprios clientes têm muitas perceções erradas, ainda mais quando a empresa é pública e quando é resgatada com fundos públicos. Cria se a ideia 'Ok, então se nós pusermos lá o dinheiro, a TAP tem de voar para onde nós queremos', porque, lá está, continua a partir se desse princípio que a TAP é uma empresa de transportes e não uma empresa com outro papel económico. Acho que é difícil corresponder sempre a todas as expetativas, porque há sempre muita gente que quer que um avião vá para um sítio ou para outro. E mesmo que uma companhia aérea vá para um determinado destino, muitas vezes as pessoas acham que as frequências não são suficientes ou que os horários são maus, ou que o avião não é bom. Acima de tudo, o que é importante é que os acionistas deem autonomia às diferentes gestões para tomarem conta desse assunto. E depois é uma questão de rentabilidade e de mercado que leva a própria companhia autonomamente a fazer esse ajuste.
"TAP não pode fazer rotas que não dão dinheiro" - Hugo Mendes
Hugo Mendes: O serviço público muitas vezes é evocado como uma categoria um pouco vaga, uma categoria política. Mas ela é uma categoria jurídica. Há regras internacionais e europeias para o serviço público ser reconhecido e ser ressarcido. E o problema é que é a confusão entre a dimensão política e a dimensão jurídica. Há expetativas que a TAP possa funcionar de acordo com regras que, na verdade, são incompatíveis com determinado tipo de expetativas. Essas regras são muito claras, não permitem que a empresa seja compensada. Por isso é que nós fazemos também no livro a comparação com a CP, em que a CP, de facto tem contrato de serviço público ao Estado português e é compensada por fazer rotas que não dão dinheiro porque, enfim, não tem que dar dinheiro à empresa. Tem de facto uma missão de servir a população numa lógica de coesão territorial e de maximizar a otimização da mobilidade. A TAP não pode fazer isso e se a obrigarmos a fazer isso, vamos obrigá la a perder dinheiro. Se a empresa não for rentável o suficiente e perder demasiado dinheiro nestas missões de serviço público político que não são depois devidamente ressarcidas, vai acontecer à empresa aquilo que aconteceu no período que vai entre 2000 e 2015: a empresa era sujeita a pressões. Havia expetativas de que ela cumprisse um determinado serviço público político. Não havia forma de compensar a empresa. A empresa não era lucrativa o suficiente e, portanto, chega a 2015 com uma frota obsoleta porque não teve capacidade de investir numa frota melhor e sem capacidade de perspetivar o futuro de forma competitiva. Precisamos de tratar com muito cuidado essa categoria do serviço público. Não é incompatível que ela possa fazer algum serviço público, mas isso tem que ser sempre enquadrável dentro das regras do mercado e dentro de uma lógica de funcionamento que permita à TAP ter lucro.
Frederico Pinheiro: Mas já agora, deixe me acrescentar aqui um ponto que é para voltar à questão do hub. A própria existência de um hub faz com que uma companhia aérea consiga ter várias ligações que não são rentáveis, mas que só são possíveis porque são financiadas pela lógica do hub. Se a TAP falisse seria substituída por outras companhias aéreas, ou mesmo que nós criássemos uma nova companhia aérea. Essa companhia aérea, pelas questões dos slots, não conseguiria estabelecer um hub. Automaticamente, várias dessas rotas que não são rentáveis diretamente, mas são rentáveis na lógica do hub, não havendo hub, essas rotas cairiam. Portanto, ainda mais importante é para o país ter uma companhia aérea que funciona com um hub.
Estão vários casos no livro e demonstram que a privatização não impede situações de falência e dão vários exemplos, a saber na Sabena, Malev, Suíça Flyall. Este risco continuará a existir na TAP se for privatizada?
"Várias companhias aéres faliram depois de serem privatizadas" - Frederico Pinheiro
Frederico Pinheiro: Eu acho que é sempre difícil nós fazermos adivinhar nos o que é que pode acontecer no futuro. Nós podemos olhar para a história e ver o que é que aconteceu. E na verdade, nós vemos que várias companhias aéreas faliram depois de serem privatizadas. Nós damos esses exemplos. E não é uma uma questão localizada. Não é só uma ou duas companhias aéreas, aconteceu em vários continentes. Existe um padrão. Agora, há uma correlação automática que, quando nós, privatizamos, a companhia aérea vai à falência pouco tempo depois? Acho que seria irresponsável da nossa parte dizer isso, mas podemos dizer que existe esse risco e existe esse histórico. Na verdade, no caso da TAP, e olhando só para as empresas portuguesas, a TAP esteve para ser privatizada no início do século à Swissair. O negócio estava titubeante, foi abortado e passado uns meses a Swissair faliu; a TAP esteve para ser vendida a German Efromovich e passado uns anos o empresário foi inclusive preso [investigado no caso Lava Jato, mas depois absolvido]. A TAP foi privatizada em 2015 e esta não é só a nossa conclusão. Temos o livro do Carlos Guimarães Pinto que são os próprios autores da Iniciativa Liberal que dizem que mesmo sem pandemia a TAP ia falir. E de facto, quando entrámos no processo de reestruturação da TAP, a Comissão Europeia obriga nos a entrar num determinado regime mais duro porque a empresa tem capitais próprios negativos de quase 600 milhões de euros. Mas nós podemos retirar essa conclusão também noutras privatizações que foram feitas em Portugal. Basta olhar, por exemplo, para a PT. Basta olhar para a Cimpor e para muitas outras empresas que foram privatizadas e vemos que estão completamente descaracterizadas, que não representam o mesmo que representavam em termos de emprego, em termos de inovação e em termos de dinâmica económica para o país.
Vocês deixam várias críticas à gestão do David Neeleman e também ao CEO, neste caso Antonio Neves. Vários anos de perdas consecutivas, tentativa de engordar a TAP, compra exagerada de aviões. Foi um erro toda esta privatização? Ou escolheram as pessoas erradas para a TAP?
Hugo Mendes: Eu acho que é uma questão de de horizonte temporal. Eu acho que era importante olhar depois, caso a caso, quem é que, quem é que comprou as companhias. Porque quando uma companhia é adquirida por uma outra empresa de aviação que tem uma perspetiva de longo prazo, de crescimento sustentado, de integração noutro grupo e, portanto, aquilo do ponto de vista da organização da rede tem que bater certo. Outra coisa é, por exemplo, quando as empresas estão vendidas a fundos e quando esses fundos (i) não têm uma experiência nem querem vir a ter uma experiência no mercado de aviação e estão lá simplesmente para maximizar, fazer mais valias de curto médio prazo. Isso coloca as empresas de aviação numa numa situação muito difícil, porque o mercado aviação é muito instável, exige um planeamento cuidado, é muitíssimo competitivo. É fácil haver perdas muito avultadas e quando há uma lógica de curto prazo em que se faz um investimento para rentabilizar esse investimento em três, quatro, cinco anos, é muito fácil cair em estratégias que são desajustadas para a sustentabilidade da companhia. Eu acho que assistimos isso na privatização de 2015, em que aquele investidor entrou na companhia já com um objetivo de fazer uma mais valia de curto prazo. Portanto, devemos olhar para a sua estratégia de frota, de rede e, sobretudo, o crescimento demasiado acelerado da companhia. Como, parte dessa estratégia, ele não queria ficar na TAP durante 20 anos. Ele queria ficar na TAP três ou quatro ou cinco anos. E isso obviamente condiciona a forma como ele, como a companhia cresceu e cresceu de forma desmesurada, colocando se ela própria em risco. Depois veio a pandemia, mas mesmo sem a pandemia, que foi uma grande constipação, mas ao mais pequeno espirro... a TAP estava muitíssimo vulnerável porque em 2019 tinha 600 milhões de capitais próprios negativos e, portanto, não, não era uma empresa que olhasse para o futuro de uma forma sustentável.
TAP de Neeleman tinha "600 milhões de capitais próprios negativos" em 2019 - Hugo Mendes
TAP de Neeleman "ia supostamente dar lucros em 2018 e 2019 e deu prejuízos gigantescos acima de 100 milhões de euros em cada ano" - Frederico Pinheiro
Frederico Pinheiro: O que essa experiência também nos permite concluir é que, em primeiro lugar, não existem só gestões públicas más e gestões privadas boas. Existem gestões públicas boas e más e gestões privadas boas e más. E o que aconteceu naquele caso é que na verdade a TAP foi privatizada, foi um processo bastante precipitado, aliás, é vendida num momento em que o Governo já tinha caído na Assembleia da República e vemos que, por exemplo, nos últimos dois anos da gestão privada, mesmo antes da pandemia, a empresa estava bastante frágil, também se deve ao facto de em 2018 e 2019 ter havido um desvio negativo nas contas face ao que estava previsto de 380 milhões de euros. Portanto, supostamente a empresa ia dar lucros em 2018 e 2019 e deu prejuízos gigantescos de acima dos 100 milhões de euros em cada ano. E isso é uma lição que nós podemos tirar. Ou seja, nem sempre a solução mágica está numa privatização ou na entrega aos privados. Como nem sempre o mal está numa gestão pública. A segunda conclusão que podemos retirar é que o próprio modelo de governação que existiu certa altura, ou seja, o Estado, mesmo tendo uma presença num primeiro momento bastante robusta dentro da empresa, com um terço do capital e num segundo momento, depois da reconfiguração acionista com metade do capital, mas não tendo a gestão executiva, vimos que a empresa foi gerida de tal forma que o acionista Estado, sem os poderes alinhados, não conseguiu fiscalizar o que estava a acontecer. Portanto, é uma conclusão importante que nós podemos tirar para futuros processos de reconfiguração acionista da TAP.
A TAP não recebeu dinheiro dos contribuintes portugueses durante muitos anos. Desde 1998 houve a pandemia. O Estado teve de injetar dinheiro, caso contrário, a empresa fecharia as portas. Vocês dão o exemplo dos patos. A conquista de aliados foi inexistente praticamente, principalmente a direita, mas também na própria esquerda houve muitas dificuldades. Mas, neste âmbito, consideram que a companhia é mal amada na opinião pública?
Hugo Mendes: Ao fim ao cabo, eu acho que houve uma convergência de fatores que levaram a que a TAP se transformasse naquele momento numa espécie de patinho feio. Por um lado, há fatores estruturais, a TAP não é uma empresa que sirva uma grande fatia da população portuguesa, como serve a CP, como serve os CTT. Portanto, não é uma empresa que tenha uma presença quotidiana na vida das pessoas. Serve uma elite que anda de avião e dentro dessa elite nem todos voaram na TAP ou voaram na TAP e noutras empresas. Portanto, a TAP é vista como mais uma empresa entre outras. Há também uma questão geracional, parece-me. Há pessoas das faixas etárias mais velhas que olham para a TAP ainda como uma jóia da coroa que hoje ass faixas etárias mais novas não tem essa ligação emocional com a empresa. E depois estávamos em pandemia. Faltavam os apoios a muita gente. O Estado português dispensou alguns apoios a alguns grupos de forma relativamente segmentada e diferenciada. E depois foi preciso salvar a empresa com um compromisso de injeção de capital. Já agora, são 3,2 mil milhões em cinco anos, o que dá uma média de 600 milhões por ano. Eu só relembro isto porque é muitas vezes esquecido. Parece que são 3,2 mil milhões todos os anos. Cada ano é uma fatia bastante mais mais pequena, mas é significativa. Depois houve uma campanha política legítima que foi bastante eficaz. Essa é uma das reflexões que também fazemos no livro, que polarizou bastante o debate e colocou a TAP sob um ataque moral e emocional ao qual o Governo teve muita dificuldade em responder.
Dão o exemplo do PSD, no livro, que agarrou o tema na altura...
Hugo Mendes: Exactamente. Toda essa confluência de factores, uns mais estruturais, outros mais conjunturais, naquele momento, fez com que fosse muito difícil a TAP ser uma empresa simpática e bem vista pela população. Tornou o trabalho político da sua salvação muito mais duro e ingrato.
"O Estado português é soberano. Se quisermos avançar para a abertura de capital é uma decisão nossa" - Hugo Mendes
Privatização? "Não há nenhum compromisso, nem nenhuma obrigatoriedade no plano de reestruturação" - Hugo Mendes
Olhando para o processo de privatização em curso, seja lá o que isto for neste momento, o primeiro ministro disse primeiro que a privatização estava prevista no plano de reestruturação aprovado em Bruxelas. Pedro Nuno Santos desmentiu esta teoria. Isto foi uma falha do ex-primeiro ministro?
Hugo Mendes: Deve ter sido. Imagino, possa ter sido um lapso que possa ter tido uma ou uma informação menos correta ou se tenha expressado, como ele disse, menos corretamente. Na verdade, esse sempre foi um ponto de honra para nós, porque havia um entendimento diferenciado junto do Ministério das Finanças - de que nós devíamos deixar uma porta semiaberta para mostrar disponibilidade para, ao longo do plano de reestruturação, serem dados passos no sentido de haver uma alienação do capital - e do lado do ministério das Infraestruturas e da Habitação, fizemos uma linha vermelha. Portanto, nós sabemos bem porque estivemos directamente envolvidos no colocar desta linha vermelha. O Estado português é soberano. Não há nenhum compromisso. Se nós quisermos avançar para a abertura de capital, é uma decisão nossa. Não há nenhum compromisso nem nenhuma obrigatoriedade inscrita no processo de reestruturação.
Abertura parcial do capital da TAP: "Antes de casarmos é sempre bom namorarmos algum tempo" - Frederico Pinheiro
"Não é obrigatório a TAP vender uma participação minoritária para ganhar escala" - Frederico Pinheiro
No livro, argumentam que seria mais inteligente dar passos curtos, mas seguros num processo de privatização. Seria aconselhável aqui fazer uma abertura parcial de capital? E porque é que defendem este caminho?
Frederico Pinheiro: Eu acho que antes de nós nos casarmos é sempre bom namorarmos algum tempo. Neste caso, na verdade, é que depois aqui é um casamento em que não há possibilidade de divórcio. Portanto, é bom temos uma relação anterior que vá passo a passo, em que nós consigamos conhecer melhor o nosso parceiro futuro que possa entrar primeiro através de parcerias aprofundadas, nem é preciso haver trocas de capital. Depois, talvez possa haver uma participação minoritária, caso os acionistas julguem ser necessário que até pode ter determinadas vantagens porque pode permitir aprofundar determinados processos que permitam à TAP ganhar escala. Não é obrigatório a TAP vender uma participação minoritária para ganhar escala, mas pode ajudar. Há determinados grupos que podem impor essa condição e pode ajudar. Pode também ser importante em futuros processos de financiamento da empresa. Ou seja, a partir do momento em que a empresa tem um privado na sua estrutura acionista, mesmo que minoritário, se há um um processo de capitalização, a partir do momento em que o privado avança a par e passo, isso é considerado pela própria Comissão Europeia como satisfazendo a uma capitalização de mercado. Portanto, reconhecemos determinadas vantagens num processo de abertura de capital minoritário. O que nós dizemos também é: calma antes de vendermos. Mesmo para aqueles que querem que defendem a venda de uma fatia maioritária do capital da TAP, isto é bom que seja feito por fases e que comecemos, lá está, por esse tal namoro antes de se avançar para uma venda maioritária do capital que depois é irreversível. Repare o Estado quando teve na TAP o David Neeleman, a relação entre os acionistas não estava alinhada porque percebia-se que havia um determinado objetivo de curto prazo do parceiro privado que conflitava de forma crítica, com uma visão de longo prazo que era detida pelo acionista Estado na altura.
"O futuro aeroporto da região de Lisboa é absolutamente fundamental para perceber se a TAP pode crescer ou não" - Hugo Mendes
Hugo Mendes: Só complementar com duas ou três notas. Em primeiro lugar, é importante não esquecer que a TAP ainda está num plano de reestruturação. Portanto, a estabilidade acionista também é importante do ponto de vista da execução calma e ponderada de um plano. O plano vai demorar vários anos. A empresa tem que reestruturar as várias dimensões, não apenas a laboral, mas na parte das compras, na parte do investimento, na parte do desenvolvimento tecnológico. Há todo um conjunto de passos que tem que ser dados ao longo destes anos e por isso é que o plano demora tantos anos. Não se pode fazer assim de um ano para o outro. A estabilidade acionista é muito importante. Em segundo lugar, há aqui uma questão exógena, mas que é fundamental para a TAP, para a valorização da empresa e para a forma como as outras empresas olham para a TAP, potenciais compradores, que é o aeroporto. O futuro aeroporto da região de Lisboa é absolutamente fundamental para perceber se a TAP pode crescer ou não, a que ritmo, quando é que ele vai existir? É daqui a cinco anos? Nós ainda estamos perante essa decisão suspensa porque não sabemos se vai ser numa lógica dual, em que se pode resolver de forma mais rápida ou se vai ser um aeroporto integralmente novo, que demora mais anos. Tudo isto impacta na valorização da empresa e, portanto, estamos a falar, provavelmente uma diferença de centenas de milhões de euros. Era importante haver mais clareza sobre, do ponto de vista infraestrutural, o que é que vai acontecer ao hub. Para perceber o que é que o hub carrier, neste caso a empresa transportadora que alimenta o hub, qual é a dimensão que ela pode ter e qual é a estratégia que pode ter no futuro? Qualquer comprador gostaria de ter mais clareza sobre isso. E do lado de quem está a vender, também quererá valorizar a empresa dizendo ao comprador 'vai haver esta infraestrutura e portanto a TAP vai poder crescer mais ou menos e pode valer mais ou menos no futuro', sendo que esse preço já estará internalizado na compra.
Citam no livro Luís Paixão Martins, ex-conselheiro do PM que tem dito que a TAP é um ativo tóxico para o governo. Também destacam que o próprio PM tem tido um percurso errático em relação à TAP. Consideram que António Costa está a agir por motivos puramente táticos ou eleitoralistas? Estava mais preocupado com as sondagens do que com o meio?
Hugo Mendes: Essa é uma hipótese. Porque é difícil explicar esta mudança de posição. Repare, o PM foi para as eleições de 2022 mantendo uma ideia e o plano de reestruturação que tinha acabado de ser aprovado, mantendo uma ideia de manter o controlo da TAP, fosse com 50% ou 51%, o que fosse. Isso depois ficaria definido no futuro. Mas não se tinha a ideia nem nunca, nesse momento, isso foi discutido no Governo de perder a maioria do capital. Essa é uma decisão muito importante. E é para quem defendeu em 2015 o que defendeu, e para nós bem, que era necessário recuperar o controlo o controlo público da TAP, é um pouco estranho. Tem que haver uma boa razão. A nossa hipótese é que a TAP transformou-se nesse patinho feio de que ninguém gosta e que o Governo pode entender que é mais prudente ou mais fácil libertar-se desse problema do que carregar o problema às costas. Para nós, aquilo que hoje pode ser visto como um problema pode ser um ativo no futuro, se e quando o programa de restauração chegar ao fim, se houver sucesso, se a empresa estiver mais competitiva, capitalizada, capaz de concorrer no mercado internacional e pudermos tirar uma lição de todo este processo que o Estado pode levar a cabo um plano de reestruturação, como levou no caso da Caixa Geral de Depósitos, e devolver à TAP uma autonomia e uma capacidade de crescimento que estava amputada no passado. Se hoje fizéssemos uma sondagem, se calhar a forma como as pessoas veem a TAP no final de 2023, se calhar não veem da mesma forma como olhavam no início de 2023 com a comissão de inquérito, com toda aquela polémica e controvérsia em torno da empresa. Quer dizer, isso passou. A TAP estabilizou, saiu dos jornais. Felizmente há mais paz social e há lucros. Portanto, neste momento a TAP se calhar já não é o ativo tóxico que há um ano ou há um ano e meio muitos dentro do governo imaginavam.
"É difícil explicar mudança de posição de Costa sobre privatização da TAP" - Hugo Mendes
"Não somos obrigados a vender a TAP" - Frederico Pinheiro
Frederico Pinheiro: Se é verdade que há 20-30 anos os políticos estavam muito certos de que as privatizações eram a maneira certa de se avançar, ou pelo menos os grandes partidos de centro, a verdade é que isso tem sido colocado em causa. Em Portugal assistimos a muito processos de privatizações na última década e meia, e muitas dessas privatizações, que foram vistas como uma inevitabilidade por causa do programa da troika, isso agora já não acontece. Não acontece no caso da TAP, não somos obrigados a vender a TAP. E, por outro lado, também vemos que hoje em dia é claro que o Estado pode ser detentor de companhias e de empresas, seja em que sector for, nomeadamente no sector da aviação civil, e ser um acionista competente e tornar essas empresas viáveis. Portanto, quando o Governo quer privatizar uma empresa, neste caso estamos a falar da TAP, tem de haver uma fundamentação muito forte. E, no nosso entendimento, essa fundamentação não existia e era muito parca e não resistia à menor crítica. A partir do momento em que começávamos a refletir sobre aqueles argumentos que eram dados pelo Governo, vimos que eles eram muito falíveis. E a nossa reflexão em torno do livro também pretende contribuir para esse debate público em torno da necessidade ou não da privatização da TAP, nós achamos que não.
"Argumentos do Governo para privatizar a TAP eram falíveis" - Frederico Pinheiro
O Presidente da República (PR) vetou o diploma de privatização da TAP, defendeu que o papel do Estado na empresa deve ser clarificado. Este chumbo de Belém fez sentido, na vossa opinião?
Frederico Pinheiro: Não há uma suficiente fundamentação da necessidade da privatização da TAP, por outro lado, o que o PR pretendia do Governo era pedir garantias extra sobre o papel de controlo e de fiscalização do Estado na futura TAP. Agora, a partir do momento em que dizemos que a TAP só é privatizada se o objetivo é garantido e se sabemos que legalmente é impossível haver uma cláusula que garanta a manutenção do hub, o Presidente da República pretende a solução para este dilema: 'Ok, então se vamos vender, como é que nós vamos ter essas garantias?'. Era essa a resposta que o Governo ainda não deu até agora.
Hugo Mendes: Não deu porque na realidade também não pode dar. Este é o problema desta discussão é que o Governo quer passar a imagem de que se chegarmos a um bom acordo com o privado, teremos garantias de que a empresa fica em Portugal, de que há um conjunto de requisitos e objetivos estratégicos que o Governo queira para a TAP que ficarão assegurados. Ora, não podemos ter essa garantia. É o problema. E o Governo pode dizer que a vai procurar, só que, por definição nunca vamos ter essa garantia. E podemos ser confrontados daqui a 3, 5, 10 anos. As garantias que nos foram dadas não se materializarem na prática. E depois, o que é que vai acontecer? Qual é a capacidade que o Governo terá para - numa situação de bloqueio ou de conflito com uma grande multinacional europeia - como é que vai lidar com uma empresa gigantesca? Vai,no limite, colocar a hipótese de nacionalizar a empresa, se o acordo não estiver a ser cumprido?
O acordo a que o Governo chega até pode ser um bom acordo, em teoria, mas temos a maior das dúvidas que depois o Estado português tenha músculo para fiscalizar bem o acordo, se estiver a ser incumprido, como no caso de desvio de tráfégo que devia estar a passar por Lisboa. O que o Governo vai fazer? Qual é a capacidade que o Governo tem de bater o pé à empresa?
"O que é que o Governo vai fazer se o acordo de privatização estiver a ser incumprido? Como é que vai lidar com uma multinacional gigantesca?" - Hugo Mendes
Devia evitar-se o cenário ANA - Aeroporto de Portugal/Vinci que tem sido considerada por alguns como uma privatização ruinosa para o país, onde o Estado perdeu a capacidade de decidir sobre os principais aeroportos nacionais?
Hugo Mendes: O exemplo da ANA é um bom exemplo. Porque a ANA tem uma cláusula que é chamada 'bomba atómica', que é, num determinado contexto, o Estado pode resgatar a concessão. Se a empresa não quiser avançar com o aeroporto, o Estado tem a prerrogativa de dizer 'ok, vocês não querem avançar com o aeroporto, temos a prerrogativa de, pagando alguma coisa, podermos resgatar a concessão para o lado do Estado'. Ora, aquilo valerá sempre vários milhares de milhões de euros, porque aquilo é uma concessão muito valiosa. Realisticamente, qual é o Governo que vai ter as condições políticas e financeiras - tendo a dívida que temos, tendo o compromisso de reduzir a dívida -, de um momento para o outro, o Governo português chegar ao pé da ANA e dizer 'ok, então agora vamos pagar cinco, seis, sete, oito, 10 mil milhões de euros para resgatar a concessão'. Isto não é realista. E a ANA sabe disso. Portanto, a bomba atómica até está lá contratualizada, mas nunca vamos fazer isto. O que é que vão fazer na TAP? Qual é realisticamente a probabilidade do Governo carregar no botão? Vai ser muito pequena e a empresa do outro lado sabe disso. O poder também se joga fora daquilo que está escrito...
A percepção do poder é importante...
Hugo Mendes: Claro. E uma multinacional europeia da dimensão da Lufthansa, da Air France, KLM, da IAG, sabem perfeitamente que um Estado pequeno como Portugal muito dificilmente terá coragem para se virar para a empresa e dizer 'vou carregar no botão vermelho, e vou trazer a TAP outra vez para o lado de cá, mediante uma determinada compensação'. Achamos isto muito pouco realista, muito pouco responsável e, por isso, o Governo não pode dar essas garantias, porque não sabes se as poder dar. A probabilidade de um Governo futuro de acionar essas garantias é muito baixa, para não dizer quase inexistente.
"Uma multinacional europeia sabe perfeitamente que um Estado pequeno como Portugal muito dificilmente terá coragem para se virar contra" - Hugo Mendes
Há várias empresas que têm sido apontadas como interessadas na TAP ou têm dito que estão interessadas na TAP. IAG, Air France/KLM, Lufthansa. Alguma destas empresas merece um comentário? Acham que faz sentido mais uma que outra?
Frederico Pinheiro: Na verdade, é difícil nós estarmos aqui a escolher A, B ou C. O que é importante é, primeiro, que não seja vendida a maioria do capital da TAP e que o parceiro da TAP seja aquele que der a melhores condições para a TAP ganhar conhecimento sobre o sector, práticas de gestão que permita alargar a rede de vendas, que permita alargar e ter uma rede de rotas mais capilar, mais forte e ao mesmo tempo que lhe permite ganhar escala em processos de compras que são de facto decisivos. Por exemplo, sabemos que quando compramos em grande escala, as empresas conseguem grandes descontos, que no mercado da aviação civil valem centenas de milhões de euros. Por exemplo, se comprarmos 100 aviões podemos estar a falar num desconto que será de 10% em vez de 2%-3%: em cada avião poupamos milhões de euros. Isso depois, nas contas e na rentabilidade de uma empresa é muito importante. E não é só nas compras, é também na questão do financiamento. Obviamente que é muito mais barato uma empresa, por exemplo, como a Air France pedir um empréstimo do que uma empresa como a TAP, que aliás, que na maior parte das vezes até tem os mercados fechados devido ao risco que comporta para os investidores. E isso tudo pesa na sustentabilidade futura de uma companhia aérea como a TAP.
"É importante que não seja vendida a maioria do capital da TAP" - Frederico Pinheiro
Existe aqui alguma percentagem que considerem que seria ideal numa abertura do capital?
Hugo Mendes: Quem tem informação é quem está com a mão na massa. Como é que está o mercado neste momento? Como é que está o apetite das empresas? Como é que está a expetativa do crescimento da TAP nos próximos anos? Enfim, isso é colocar um número em cima da mesa, o que não faz muito sentido.
Foram noticiadas avaliações a TAP entre os mil milhões e os dois mil milhões de euros. Fazem sentido estas avaliações?
Hugo Mendes: Não sei se fazem sentido. Mais uma vez, acho que não temos informação para poder comentar. Acho que uma coisa é certa e quanto mais tempo passar, mais a empresa for ganhando robustez e levando a cabo a reestruturação e tendo lucros, mais esse intervalo de valor vai subir. Isso é fundamental. Não há nada neste momento que concorra para valorizar a TAP, vendendo já. Se vendermos daqui a um ano ou daqui a dois anos, ou daqui a três anos, partindo do princípio que não há nenhuma calamidade... e que a empresa se pode ir reestruturando, crescendo e afirmando se perante as outras empresas como uma empresa lucrativa. Isso vai valorizar a companhia e, portanto, esta pressa não joga a favor da valorização da TAP.
"A pressa não joga a favor da valorização da TAP" - Hugo Mendes
A própria ex-CEO da TAP (Christine Ourmières-Widener) defendia um processo gradual. Foi um erro demiti-la da TAP?
Hugo Mendes: Não quero entrar nessa discussão. Isso é uma discussão eminentemente jurídica sobre se a falha que lhe é imputada é suficientemente grave para levar aquela consequência. A única coisa que posso dizer é que sempre trabalhámos muitíssimo bem com ela. Temos a melhor das referências e a melhor da experiência ao longo daquele ano e meio.
"Sempre trabalhámos muitíssimo bem com Christine Ourmières-Widener" - Hugo Mendes
"O dossier TAP está a ser levado a cabo mais pelo ministério das Finanças" - Hugo Mendes
Como é que qualifica a prestação do (agora demitido) ministro João Galamba à frente das Infraestruturas no dossie TAP?
Hugo Mendes: Eu vou dizer o que já disse. Acho que é difícil para nós, porque quer dizer, na verdade nós vamos vendo umas coisas nos jornais. Eu, pelo menos não acompanho com grande detalhe. Ao fim ao cabo, sim. A ideia que tenho é que o dossier TAP está a ser levado a cabo mais pelas Finanças do que propriamente pelo Ministério das Infraestruturas, que tem sempre mais atenção às dimensões operacionais. Portanto, acho que é natural que as Finanças tenham alguma capacidade de liderança no processo de alienação do capital.
Medina e Costa conseguiram agarrar finalmente este dossier, algo que talvez não conseguissem durante o tempo de Pedro Nuno Santos?
Hugo Mendes. Eu acho que é difícil fazer comparações, porque a situação é muito diferente. Ou seja, a nossa equipa estava num momento na empresa em que havia maior turbulência do que há agora. Porquê? Porque também o facto de ter havido excelentes resultados permitiu à empresa devolver rendimentos que não tinha condições no passado e a devolução de rendimentos para os trabalhadores, a redução dos cortes dos salários em concreto, trouxe outra paz à empresa. Estamos num ciclo mais feliz e também menos turbulento. Eu acho que a diferença entre os períodos é essa. Estamos num período mais calmo, Nós estávamos num momento mais atribulado da reestruturação. Primeiro, na aprovação dos acordos temporários de emergência, a aprovação do plano, aquele primeiro ano de 2022 de aplicação do plano, que foi muito duro, quando começam a se começam a renegociar os acordos da empresa, ainda partindo do princípio que os resultados não iriam ser tão positivos como acabaram por ser, felizmente. E isso também permitiu reduzir os cortes mais depressa e trazer outra estabilidade e paz social à empresa. Acho que a diferença dos ciclos é essa.
No livro abordam o caso Alexandra Reis. Dizem que tentaram encontrar o valor mais baixo possível, respeitando os direitos da administradora, e que o valor dos 500 mil euros foi encontrado pelo consultor jurídico. Olhando para este caso, que culminou na demissão do Pedro Nuno Santos, teriam feito algo muito diferente?
Hugo Mendes: Aquele período de quatro, cinco dias, estamos a falar de um período bastante curto, em que as coisas de precipitaram, houve a negociação e depois há a decisão final e ficou fechado o acordo... Olhando para trás, eu teria falado com o secretario de Estado do Tesouro e teria comentado e partilhado com ele a nossa opinião e seguramente que o desfecho deste caso teria sido diferente.
Frederico Pinheiro: Eu não participei no processo, mas olhando para trás, obviamente que acho que fica claro que se fosse agora, as coisas teriam de ter sido feitas de maneira diferente e acho que teríamos de ter tido mais atenção ao impacto emocional que esta decisão teria no povo português e não só estarmos preocupados com a otimização da gestão da companhia aérea porque de facto pode-se defender que aquela decisão era boa para a empresa, que estava a gerir 3,2 mil milhões de euros públicos, era importante que houvesse um ambiente sólido na comissão executiva. Mas obviamente que do ponto de vista público, as emoções foram muito fortes e que isso nos obriga a tirar lições para o futuro também.
Olhando para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), referem que no livro que houve deputados que estavam mal preparados, que não compreenderam bem a empresa que estavam a avaliar, a sua dimensão e o seu impacto. A CPI deveria ter sido diferente? O âmbito da CPI deveria ter sido, talvez, não tão alargado? Deveria ter sido mais incisivo?
Hugo Mendes: Havia aqui uma grande amplitude temporal. Havia aqui um paradoxo que é, por um lado, tudo estava em discussão. Houve discussão em torno da privatização de 2015, da reconfiguração acionista de 2017. Portanto, tudo estava em aberto, tudo era passível de ser discutido, mesmo que o escopo oficial da Comissão Europeia não fosse esse. E, ao mesmo tempo, o objeto oficial da comissão era, na verdade, um micro caso. E, portanto, assistimos aqui a uma grande a uma grande dessintonia entre discussões sobre períodos longos de vários anos, em que não havia comunicações pessoais e, portanto, havia alguns relatórios, algumas auditorias. Nesse sentido, era uma Comissão Parlamentar de Inquérito normal. E depois tínhamos um momento muito particular em que se podia discutir quase ao minuto o que é que aconteceu no dia 28 de janeiro na interação entre a pessoa A e a pessoa B. Portanto, aquilo que nos pareceu é que o facto de esta segunda dimensão, tendo permitido o acesso a as comunicações pessoais das pessoas em torno do caso Alexandra Reis, transformou a discussão, polarizou muito e concentrou muito a discussão neste caso. Se calhar era mais interessante ter ter tido uma discussão mais ampla sobre a primeira dimensão: quais foram os momentos centrais da vida da TAP desde 2015? E quais foram as decisões que os governos tiveram de tomar? Isso tudo foi discutido e foi a mais valia da CPI. No caso em particular da Alexandra Reis, como estávamos perante uma grande densidade de comunicações, acabou por haver aqui uma grande assimetria entre estas duas dimensões, entre a discussão que me parecia mais interessante e o aspeto voyeurista das mensagens, que acabou por gerar controvérsia política. Mas permitiu também dar uma imagem muito distorcida da empresa, porque quando uma grande organização está a haver uma reestruturação. Começamos a avaliar o trabalho das pessoas por um caso e por um conjunto de e-mails e whatsapps trocados, é natural que esse caso possa não ser representativo e não seja capaz de nos dar uma imagem global do que é o trabalho daquela instituição, o que é o trabalho daquelas pessoas, da própria importância daquele caso para a instituição. Porque, repare, o caso Alexandra Reis foi importante por ter as consequências políticas que teve. Mas no caso da TAP, o caso da senhora Reis é quase irrelevante, porque, do ponto de vista legal, devia ter sido um acto perfeitamente limpo. Houve esse problema. Mas na verdade, uma empresa que perdeu 2.000 ou 3.000 trabalhadores, que viu um despedimento coletivo, que estava a renegociar leasings, que tinha recebido uma injeção superior a 3 mil milhões de euros, quer dizer, o caso Alexandra Reis é 1% daquilo que que fizemos na TAP, daquilo que aconteceu na TAP. Foi muitíssimo amplificado pela comissão de inquérito. Mas essa amplificação é também uma distorção do que era a empresa e do que foi o trabalho daquelas pessoas todas.
Sentem que as pressões públicas sobre a empresa são esquizófrenicas: num dia exigem serviço público, noutro exigem contas certas?
Hugo Mendes: Vive-se uma situação em que é muito difícil estabelecer uma linha clara. O que é gestão? O que é política? Noutras circunstâncias em que há um problema numa empresa gera um problema político, é natural que a tutela política procure perceber o que é que se passa e contribuir para a sua solução. E isso envolve contactos entre as pessoas, Envolve, às vezes, posições diferentes. As pessoas dizem 'mas isto é interferência', não sei se é interferência. Se o governo se desresponsabilizasse por completo, não interferia de todo, mas depois as pessoas iam bater-lhes à porta. Pode haver posições diferentes. São estilos de governação diferentes. Eu assumo que possa haver aqui um leque de formas de lidar com estes problemas de forma diferente. A nossa forma de lidar com a TAP, em concreto... a TAP era um barril de pólvora e portanto nós dávamos todo o apoio à administração, falávamos com eles várias vezes por dia. E depois há aqui um ponto que francamente me choca na incapacidade das pessoas perceberem o que está em causa, que é uma reestruturação. Implica decisões difíceis, implica que muitas vezes a administração encontre resistências legítimas ou não. É preciso mudar de fornecedores, é preciso reduzir salários, é preciso mudar a organização e os horários. Tudo isso envolve resistências e uma administração que não tem o apoio da accionista, que sente que o accionista não está com eles, vai ser uma administração muito mais fraca. E nós tínhamos colocado 3 mil milhões na TAP. É para dar o apoio à administração? Precisavamos constantemente de informação para justificar aos deputados, às pessoas, aos jornalistas porque todos os dias éramos questionados. Era impossível achar que nós nos podíamos relacionar com a TAP como nos relacionamos, por exemplo, com outras empresas públicas.
O tal telefonema por ano...
Hugo Mendes: Isso não pode existir. Esta ideia de não perceberem que, numa empresa em reestruturação, a administração precisa muito mais do accionista do que uma empresa normal. Precisa de orientações e precisa de apoio. Muitas vezes a Christine vinha falar comigo, 'eu preciso fazer isto, mas eu não sei se vou conseguir'. Ela precisava de se sentir com os pés bem no chão, porque ela não podia dizer uma coisa e depois que nos a desautorizassemos. Tem que haver uma sintonia. Fomos errada e injustamente acusados.
Entretanto já passaram mais de seis meses da noite fatídica de 26 de Abril o Ministério das Infraestruturas. Como é que está a correr o processo? Já foi questionado pelas autoridades? Está aqui algum avanço?
Frederico Pinheiro: Não pretendo fazer nenhum comentário sobre isso, até porque o nosso foco está num assunto que é muito mais importante, que é um debate sobre as políticas públicas no setor da aviação civil. E não quero desviar as atenções para outro tema.
Entretanto apresentou queixa contra o primeiro ministro e João Galamba. O que é que espera do processo?
Frederico Pinheiro: A informação sobre isso já está pública. Não me vou pronunciar sobre o processo.
Sobre o novo aeroporto, como é que olham para este processo? Já devia ter sido decidido? O ministro Pedro Nuno Santos, na altura, tentou alavancar aqui o processo, mas foi cancelado por António Costa.
Hugo Mendes: Há uma dupla dimensão. Aquilo que estava combinado entre o ministro e o primeiro ministro, que eu não sei, não testemunhei. Posso admitir que tenha havido uma descoordenação. A outra coisa era aquilo que estava combinado entre o ministro e eu. E isso foi cumprido integralmente. Tínhamos duas reuniões. Nesse dia de manhã, temos uma reunião com a ANA e com a Confederação do Turismo de Portugal. Estava tudo acertado com eles. À tarde, tivemos uma conferência de imprensa, onde foi explicado o racional do despacho. Às 18h00, o despacho sai. Um despacho foi produzido a muitas mãos entre os dois gabinetes, oito, dez mãos. Portanto, aquilo foi tudo feito de forma planeada. Se alguma coisa correu mal, tem que se questionar as duas pessoas envolvidas. Entretanto, iniciou se este processo da avaliação ambiental estratégica. Imagino que este mês ainda seja assim. E depois o Governo vai ter que tomar uma decisão. Eu espero que seja uma decisão que seja capaz...
Há algum cenário favorito para vocês? É Alcochete?
Hugo Mendes: A preocupação fundamental para nós, creio que vai ser também a preocupação do governo, que é alinhar as exigências de curto prazo com o longo prazo, porque essa era a filosofia essencial daquele despacho. Podemos não gostar da solução A ou B, mas o despacho seguia uma filosofia muita clara: como é que compatibilizamos a necessidade de o aeroporto de Lisboa crescer num espaço de cinco, dez anos com os próximos 50 ou 100 anos? Qualquer que seja a solução ela tem que acomodar estas duas preocupações. O curto prazo não pode canibalizar a longo prazo, porque senão daqui a 20 ou 30 anos estamos outra vez a discutir a ampliação do aeroporto. Temos que resolver este problema de uma vez por todas.