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Cinema - Até um romance nasceu da relação criativa com Manoel de Oliveira

Tudo começou porque Manoel de Oliveira queria filmar a “Madame Bovary” e recebeu a má notícia de que o cineasta francês Claude Chabrol se lhe adiantara, preparando a longa-metragem que estrearia em 1991, com Isabelle Huppert no papel da escandalosa adúltera criada no séculoXIX por Gustave Flaubert.

Tudo começou porque Manoel de Oliveira queria filmar a “Madame Bovary” e recebeu a má notícia de que o cineasta francês Claude Chabrol se lhe adiantara, preparando a longa-metragem que estrearia em 1991, com Isabelle Huppert no papel da escandalosa adúltera criada no séculoXIX por Gustave Flaubert. Empenhado em converter a derrota em vitória, o realizador português, já então mais do que octogenário, teve um impulso que não só resultaria num filme marcante, mas também num romance de Agustina Bessa-Luís.
“Ele ficou furioso quando lhe contei que o Chabrol estava a fazer o filme, mas veio logo à baila a ideia de fazermos uma ‘Madame Bovary’ moderna. Seguimos logo disparados para casa da Agustina”, recordou ao JornalEconómico o produtor cinematográfico Paulo Branco, ligado ao longo de várias décadas ao decano do cinema mundial, falecido em 2015, aos 106 anos.
Ainda esperaram uma hora pela escritora, mas logo que ela apareceu entrou em ação a cumplicidade entre os dois vultos da cultura portuguesa, reforçada em 1981, quando a autora de “Fanny Owen” adapatou o seu romance para dar origem a “Francisca”, um dos filmes que marcaram a “segunda vida” do cineasta que se estreara em 1931, com o documentário “Douro, Faina Fluvial”, e fizera a primeira longa-metragem em 1942, rodeando-se do elenco infantil de “Aniki-Bóbó”. Agustina ouviu o desafio de Manoel e respondeu com uma Ema “Bovarinha” das quintas do Douro. “Para cada um manter a sua liberdade, ficou desde logo assente que ela escreveria o romance e só depois ele faria a adaptação”, recorda Paulo Branco. E assim foi: “Vale Abraão” chegou às livrarias em 1991 e só em 1993 os cinéfilos puderam ver Leonor Silveira a interpretar a sua personagem principal.
Outros quatro filmes viriam a nascer da relação criativa entre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira - mesmo sem contar com “O Convento”, no qual rapidamente ficou claro que seria impossível chegarem a um consenso quanto à história que pretendiam ver contada, tendo a escritora levado a mal ver o seu nome no genérico do filme -, mas Paulo Branco salienta que Agustina preferia manter distância dos locais de rodagem, numa regra pessoal que não foi sequer quebrada quando Anabela Baldaque, uma das suas netas, contracenou com Ricardo Trêpa, neto do cineasta, nos filmes “O Princípio da Incerteza” (2002) e “Espelho Mágico” (2005), adaptações, respetivamente, dos romances “O Princípio da Incerteza” e “A Alma dos Ricos”. Mais tarde, os dois descendentes de Manoel e Agustina viriam a interpretar o papel de marido e mulher em “Cristóvão Colombo - O Enigma”.
Abundam histórias acerca de desentendimentos entre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira, que chegou a fazer um desabafo sumarento aquando da apresentação de “Espelho Mágico”, no Festival de Veneza. “Agustina gosta de não gostar dos meus filmes. Mas eu gosto que ela não goste”, disse o realizador, capaz de uma ironia gritante. Garante, no entanto, Paulo Branco que essa “era uma coisa que nos passava ao lado” e que “geriam entre eles”.
Recordando Agustina como “uma personagem absolutamente única”, capaz de “diálogos fantásticos” e “com ideias muito próprias”, o produtor cinematográfico não tem dúvidas em afirmar que uma “parte essencial da obra de Manoel de Oliveira” se deve à “relação entre dois monstros”, no melhor sentido da palavra. “Para mim, os grandes filmes dele foram aqueles em que houve uma colaboração com Agustina”, afirma Paulo Branco, equiparando-os apenas às longas-metragens em que o realizador tirou partido do génio de Camilo Castelo Branco e do Padre António Vieira.
Manoel de Oliveira também filmou Agustina no documentário autobiográfico “Porto da Minha Infância”, lançado em 2001, mas nem só dele viveu o envolvimento da escritora com a sétima arte. Mais recentemente, em 2009, João Botelho adaptou o romance “A Corte do Norte”, que anos antes estivera perto de ser realizado por José Álvaro de Morais. Baseada na vida da atriz do século XIX Emília de Sousa, que casou com um milionário madeirense, a longa-metragem foi protagonizada por Ana Moreira. 

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