A prosa irónica e corrosiva de Eça de Queiroz e de Ramalho Ortigão sobre a decrépida sociedade portuguesa de finais do século XIX teve um nome transparente: “As Farpas”. Começando a ser escritas pelos dois em 1871, não por acaso o ano das Conferências do Casino, acabaram por ser continuadas apenas por Queiroz até 1882. São um excelso exemplo da crítica contundente sobre a política, a religião, a economia e a sociedade que, esporadicamente, teve os seus discípulos ao longo das décadas seguintes. Mas, na efeverscente vida cultural desse tempo, existem muitos nós-górdios. É sobre um deles que Maria Filomena Mónica reflecte: a “estranha amizade” entre Eça e Ramalho. Não por acaso a autora inicia o livro recordando o duelo travado em 4 de Fevereiro de 1866 entre Ramalho Ortigão e Antero de Quental (a figura emergente das Conferências do Casino), por causa da polémica que envolveu o intenso debate sobre o romantismo com António Feliciano de Castilho. Filomena Mónica percorre a vida dos dois, o encontro de ideias (estimuladas pelas correntes mais radicais vindas da Europa e, sobretudo, de França), e o desaguar no folhetim policial “O Mistério da Estrada de Sintra”. Ramalho Ortigão não tem grande afinidade com os que organizam as Conferências (que viriam a ser proibidas, sobreudo por causa dos ataques de Adolfo Coelho aos lentes da Universidade de Coimbra), especialmente com Antero, como recorda Filomena Mónica. Elas realizaram-se num contexto muito peculiar a nível internacional: era o período da Comuna de Paris e da unificação alemã. Nessa altura era o isolamento português que preocupava os intelectuais nacionais, de Antero ao enérgico Batalha Reis. Nascia a Geração de 70.
“As Farpas” agitaram as águas num país que, apesar de tudo, era tolerante com as vozes críticas. Como escreve Filomena Mónica: “As Farpas revelam a visão de quem, sonhando viver numa pátria culta, se depara com um país atrasado”. Os alvos eram os políticos; a arma utilizada, o riso. A forma como se fazem as eleições é desfeita de forma brutal. Trucida: “Quando uma Câmara se fecha, o Governo nomeia outra. Nomeia, porque uma Câmara não é eleita pelo povo, é nomeada pelo Governo. O deputado é um empregado de confiança. Somente a sua nomeação não é feita por um decreto nitidamente impresso no Diário do Governo”. Eça partirá para Havana, e Ramalho ficará com “As Farpas”, mas sem o sentido irónico total de Eça.
Eça viria a dirigir atenção para os seus livros, embora não deixasse a imprensa. A relação entre ambos foi de uma “estranha amizade”. Como explica Filomena Mónica: “Ora, entre Eça e Ramalho havia mais interesses do que amizade: Eça precisava da ajuda de Ramalho para ser publicado e Ramalho de alguém que com ele colaborasse em certos empreendimentos literários. (...) Fingindo não se ter apercebido do veneno contido na biografia que sobre ele Eça escrevera em 1878, Ramalho manteve a ficção de serem amigos. Só três anos após a morte de Eça é que o verniz estalou. (...) Há depois a parte mais recôndita, a da personalidade. Eça era um solitário, que não precisava de ninguém para se sentir feliz; Ramalho carecia de ser admirado nos salões”. Quase tudo os separava. Exceto alguns interesses particulares. E isso Maria Filomena Mónica, com o espírito de observação, intensidade crítica e delicadeza de escrita que a caracterizam, esclarece como ninguém.