A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), instituição pública tutelada pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, responsável pela gestão dos jogos sociais e por assegurar toda a assistência social na região de Lisboa e Vale do Tejo, ficou esta semana sem órgãos de gestão por decisão do Governo.
Ana Jorge, a provedora, e todos os administradores - Sérgio Cintra, Teresa do Passo, João Correia e Nuno Miguel Alves – foram exonerados, mas ficam em funções até entrar uma nova equipa.
Veja tudo o essencial que necessita de saber sobre este tema.
Como justificou o Governo a exoneração da provedora e da mesa da SCML?
O Governo justificou a decisão apontando a Ana Jorge, e aos elementos da Mesa, “atuações gravemente negligentes” que afetaram a gestão da instituição.
Considera que a provedora demissionária detetou uma iminente rutura de tesouraria, em junho do ano passado, sem que tivesse tomado as medidas adequadas que se impunham para inverter rapidamente a situação financeira de extrema gravidade e os riscos de insustentabilidade da SCML.
Afirma, também, que Ana Jorge deveria ter apresentado um plano estratégico ou de reestruturação para contrariar as fortes quebras sentidas pela diminuição das receitas provenientes dos jogos sociais que são a principal fonte de rendimento da instituição, representando 85% dos lucros da SCML.
E é acusada de não prestar as informações que a tutela pediu.
No dia 12 a provedora reuniu-se com a nova ministra da tutela, Rosário Palma Ramalho, e terá recebido a indicação para apresentar no prazo de duas semanas um plano de reestruturação urgente para a instituição. Ana Jorge, segundo o Governo, mostrou-se incapaz de o fazer.
O primeiro-ministro, Luís Montenegro, justificou a mudança com a "situação dificílima do ponto de vista financeiro e do ponto de vista da garantia e da salvaguarda das suas funções sociais” em que a SCML se encontra.
“É preciso que haja, por parte da tutela, total sintonia com a respetiva administração para se cumprirem as orientações de política que emanam do novo Governo”, frisou.
Ana Jorge diz que responderá a tempo próprio e no local próprio, mas afirmou-se triste, desiludida e caluniada com a forma como foi dispensada.
A SCML está sob escrutínio?
Estão a decorrer duas auditorias na instituição. Uma interna, sobre as contas de 2021 e 2022, e uma outra externa, esta forense, visando as contas da Santa Casa Global, uma empresa 100% detida pela Misericórdia de Lisboa que tinha como objeto a internacionalização dos jogos sociais para fazer aumentar os lucros tendo em conta a diminuição do interesse pelo jogo verificada em Portugal desde 2019.
O resultado das auditorias bastaria para o Governo ficar com uma noção da realidade financeira da instituição.
Significa que a gestão de Ana Jorge poderá também ser alvo de acusações?
É improvável. Os desequilíbrios financeiros da instituição foram detetados pela anterior ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho. Foi esta governante que se recusou homologar os relatórios de contas de 2021 e de 2022 por entender que nem todo estava bem explicado. Foi também por sua iniciativa que se avançou com a realização das auditorias. Ana Jorge entra na Misericórdia apenas em maio de 2023.
Ana Jorge está no cargo desde maio do ano passado, substituindo Edmundo Martinho que saiu antes de ter terminado o mandato. Depois de ter tomado posse, foram mandadas realizar pelo anterior governo, do PS, duas auditorias, uma interna, às contas de 2021 e 2022, e outra externa, a cargo da consultora BDO, para averiguar as contas da Santa Casa Global. Terão sido os investimentos nesta empresa que terão feito cambalear as contas da SCML que Ana Jorge nunca conseguiu endireitar.
Antes, o provedor era Edmundo Martinho. Entrou numa altura em que os jogos sociais começara a diminuir e os prejuízos a avolumarem-se, sabendo-se agora um pouco mais sobre isso porque finalmente foram publicados os relatórios de 2021 e de 2022.
O que dizem os relatórios?
A SCML acumula saldos de tesouraria negativos desde 2019, num total de 176 milhões de euros: 15,7 milhões negativos em 2019; perdas de 67,6 milhões em 2020; de 54,1 milhões em 2021; e mais 38,8 milhões negativos em 2022. Isto fez com que se recorresse ao saldo de gerência que em 2019 era de 217 milhões de euros e que em 2022 ficou reduzido a 41 milhões.
No fim de 2023, a SCML tinha apresentado resultados positivos de 10 milhões de euros, mas terá tido receitas abaixo do orçamentado no primeiro trimestre deste ano.
Quais as maiores dúvidas sobre a gestão de Edmundo Martinho?
O projeto da Santa Casa Global, empresa criada para investir na internacionalização dos jogos, que foi vista como a solução para manter as receitas ao nível das despesas, mas que resultou num buraco nas contas. A empresa que realizou as auditorias fala em mais de 80 “desconformidades”, com prejuízos superiores a 30 milhões de euros.
Poderão estar em causa mais 50 milhões de euros com o projeto de internacionalização no Brasil.
Ana Jorge pegou nas conclusões, ainda preliminares, da empresa auditora e enviou-as para o Ministério Público.
Há um grande pormenor que não pode ser esquecido. Ao mesmo tempo que os lucros com os jogos iam diminuindo, os custos iam aumentando, sobretudo com a crise da pandemia de covid-19. Recorde-se que o Governo de então sobrecarregou a Misericórdia com encargos extra sem nenhum reembolso.
O problema é que a Misericórdia nunca conciliou os custos com as receitas. Estas diminuíam sem que os custos se ressentissem na mesma proporção.
Significa que as contas já estão a ser investigadas pelo Ministério Público?
É verdade. Há mais do que um processo a ser investigado incidindo sobre o tempo em que Edmundo Martinho foi provedor.
Como reagiram os partidos?
O PS anunciou que vai chamar a ministra Maria do Rosário Palma Ramalho, com caráter de urgência, para ser ouvida sobre a exoneração da mesa da SCML.
Também a IL anunciou, na semana passada, que quer ouvir na Assembleia da República os responsáveis que agora cessam funções, mas os anteriores gestores e decisores políticos ligados à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa por causa dos projetos da internacionalização.
O PSD tentou, pelo menos por três vezes, que Edmundo Martinho fosse ouvido no Parlamento sobre as contas da SCML, mas nunca conseguiu a aprovação do PS, que tinha a maioria parlamentar. Agora não deverá escapar à audição.