O pedido de demissão de António Costa e a subsequente queda do Governo apanharam de surpresa a maioria dos portugueses, deixando o país mergulhado numa incerteza política a agravar o contexto internacional. Com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) repleto de atrasos, um governo de gestão tenderá a piorar o cenário, tal como nos vários serviços públicos onde o investimento e o reforço da despesa eram críticos. A proposta de Orçamento do Estado para 2024 (OE2024) poderá ficar sem efeito, a menos que o Presidente da República entenda que a demissão de António Costa apenas deve ser formalizada após a aprovação do Orçamento na especialidade.
Se a proposta cair, com ela caem as reduções no IRS, as atualizações salariais e de pensões e o reforço da despesa em sectores críticos como a saúde e educação, bem como medidas como o fim do Regime dos Residentes Não Habituais (RNH).
O atual Governo caiu com a polémica revelada esta terça-feira, antes da aprovação do OE2024, que previa um reforço da despesa pública de mais de 10 mil milhões de euros. Com vários serviços públicos em graves dificuldades, esta é a principal preocupação dos economistas ouvidos pelo JE, que destacam o impacto negativo que estes atrasos terão.
Armindo Monteiro, presidente da CIP – Confederação Empresarial de Portugal, começa por lembrar o papel “alargado” do Estado na vida nacional, que o transforma no maior agente económico em Portugal. Como tal, quando o Governo entra em dificuldades, os problemas para o país são amplificados.
“Se o Estado não tivesse uma intervenção tão grande na economia (e não como regulador, mas como ator), o problema não teria esta dimensão”, resume.
Sublinhando o aumento da incerteza que esta crise política gera, Fernando Teixeira dos Santos, economista e professor universitário, lembra as “coisas boas para os portugueses” que o OE trazia, sobretudo ao nível dos rendimentos, e que agora ficam na gaveta. Por um lado, as atualizações salariais, de pensões e dos escalões do IRS não avançarão, o que pode “deixar comprometida” a dinâmica do consumo; por outro, o reforço dos serviços públicos “vai ficar muito aquém” do previsto e necessário.
“O Governo estava num processo de negociação com os médicos e os últimos sinais indicavam que poderíamos estar muito perto de um acordo, o que iria desanuviar a situação no sector. Agora deixa de o poder, é um governo de gestão”, explica o antigo ministro das Finanças. Ao mesmo tempo, transferências importantes para o sector também ficam sem efeito, o que piora a falta de equipamentos.
António Nogueira Leite, economista e professor universitário, lembra outros sectores numa situação semelhante, como a justiça e a educação. Como tal, “é certo que agora não melhorarão”, dada a ausência de investimento, o que deixa preocupações numa altura em que “a Europa está a ter algum arrefecimento económico”. Pior, estes atrasos terão um impacto ainda maior numa altura em que a inflação continua elevada e as pressões nos preços parecem estar a ressurgir, acrescenta Armindo Monteiro, o que aumenta o risco associado a um Orçamento do Estado por duodécimos.
Outro sector que será afetado é o da segurança, dada a extinção recente do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e o período de transição entre as várias agências criadas para este efeito, completa o presidente da CIP. Esta é uma realidade ainda mais preocupante no contexto geopolítico internacional, de guerra no leste europeu e no Médio Oriente.
“Não se escolhe o timing [de uma crise política], mas esta vem mesmo na pior altura”, remata António Nogueira Leite.
PRR vai atrasar ainda mais
Precisamente do lado do investimento, o PRR fica no foco das preocupações dos economistas. O presidente da CIP lembra os atrasos que o programa vinha já registando, antecipando que essa dinâmica negativa se agrave com a queda do Governo. Sendo este “o principal instrumento europeu para apoio às empresas e para a modernização do país”, o impacto do lado do crescimento só poderá ser negativo.
“A proposta de OE2024 que caiu com a demissão do Governo previa de facto uma dinamização significativa do PRR e que, penso, fica agora comprometida”, afirma Teixeira dos Santos.
Com a demissão do Executivo de António Costa poderá caducar a proposta do Orçamento do Estado para 2024, que foi aprovado há uma semana na generalidade. O país vai para eleições e entra no novo ano com um orçamento velho, num regime de duodécimos, o mesmo será dizer que só se pode gastar 1/12 da despesa de 2023 em cada mês.
Ao JE o advogado e antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rogério Fernandes Ferreira, explica que “todas as propostas de lei caducam com a demissão do Governo”, tal como refere o número 6 do artigo 167 da Constituição da República.
Dívida preocupa menos
Apesar dos riscos acrescidos do lado do crescimento, a dinâmica de redução da dívida não deve sofrer com a queda do Governo. Ao mesmo tempo, um disparo dos juros da dívida também não é expectável, embora os economistas ouvidos pelo JE admitam uma correção em alta no imediato nos mercados. No médio prazo, a trajetória recente deverá ser suficiente para impedir cortes de rating pelas agências de notação financeira internacional.
“O mercado obrigacionista permanece calmo e em linha com a média europeia”, pelo que “neste momento não parece haver razões para alarme em relação aos juros da dívida, pois os investidores institucionais continuam serenos a aguardar novas informações sobre o tema”, expõe Victor Madeira, analista da XTB.
Ainda assim, a bolsa lisboeta sofreu durante a sessão, que fechou a cair mais de 2,5%, tendo chegado a recuar mais de 3% durante o dia. As empresas mais afetadas foram algumas das “mais envolvidas em projetos com o governo, como a Greenvolt (a cair mais de 6%), Galp (mais de 5%) e Mota-Engil (mais de 9%)”, mas há outros efeitos a ter em conta.
“É importante notar que as empresas com pior desempenho estão também a ser penalizadas com as fortes quedas registadas pelas matérias-primas energéticas, tanto o petróleo como o gás natural, nomeadamente o Brent que está a desvalorizar mais de 3%”, explica.
Já quanto à notação da dívida, Fernando Teixeira dos Santos não teme grandes alterações. Reconhecendo a possibilidade de ajustes nos mercados no imediato, o economista argumenta que, "num regime por duodécimos, não há grande risco de derrapagem orçamental", pelo que o "desempenho positivo" deste ano deve ser suficiente para manter a economia nacional no rumo da consolidação.
Nesta mesma linha, a DBRS já se veio pronunciar: a apreensão só virá caso o novo Governo altere o rumo da política orçamental. Isso mesmo argumenta António Nogueira Leite, que vê as contas públicas "numa situação muito estável, com um compromisso muito credível", mas, "se os operadores estiverem atentos", "os próprios mercados tratarão de nos fazer pagar pela heterodoxia" escolhida.