Vai nascer a Associação Portuguesa dos Contribuintes (APC), liderada por Paulo Carmona, presidente do Fórum de Administradores e Gestores de Empresas e ex-membro da Iniciativa Liberal. Nova associação surge de um movimento cívico e apartidário e tem por missão reequilibrar a relação entre os milhões de contribuintes, famílias e empresas, e o Fisco. Pretende defender a simplificação da fiscalidade, promover a literacia fiscal e escrutinar o bom uso dos dinheiros públicos.
Em entrevista ao JE, Paulo Carmona diz que APC tem uma meta ambiciosa de chegar aos 3.000 associados no final de 2024. Um número, diz, que confere maior legitimidade para a nova organização defender as suas ideias, rumo à Concertação Social. Sinaliza ainda que a evolução das garantias de contribuintes tem sido sempre no sentido do reforço da proteção do Estado e não do contribuinte. E alerta que os problemas em torno da litigância tributária em Portugal prejudicam o investimento e a eficácia e justiça do sistema fiscal, criticando ainda que o controlo do défice e da dívida tenha sido feito por aumento da carga fiscal sobre todos nós.
Como é que surgiu a ideia de criação da Associação Portuguesa dos Contribuintes (APC)?
A Associação Portuguesa dos Contribuintes surge de um movimento cívico que pretende reequilibrar a relação entre o Estado tributário e os milhões de contribuintes, sejam eles pessoas singulares ou coletivas. O nosso grande objetivo é contribuir para a transformação do Estado tributário num agente do bem-comum. Para tal, vamos escrutinar o bom uso dos dinheiros públicos, vamos defender a simplificação da fiscalidade e vamos promover a literacia fiscal. A nossa grande ambição é integrarmos a Concertação Social no prazo de três anos. Entendemos que esse é o fórum mais apropriado para debatermos a fiscalidade. A ideia de uma associação dos contribuintes é antiga e peca por tardia – há muito que os contribuintes portugueses mereciam uma associação como a APC. Entendemos e compreendemos a necessidade de haver impostos, não disputamos isso. Mas disputamos certos aspetos relacionados com a fiscalidade, por exemplo, taxas ou contribuições que, para o Estado, não acarretam custos, mas que se traduzem em serviços cobrados aos contribuintes e que, na prática, resultam em lucros para o Estado. Situações como estas não fazem qualquer sentido e vai ser este o nosso campo de atuação.
Existe uma disparidade de armas na relação entre o fisco e os contribuintes? Qual é o contributo que pode dar aos contribuintes?
Equilibrar o mais possível a relação entre o Estado tributário e os contribuintes. Acreditamos muito nesta missão porque, a verdade, é que os contribuintes se sacrificam – em tempo e em dinheiro – a pagar impostos que são destinados ao bem-comum. Reequilibrando esta relação, acreditamos que o Estado demonstre mais respeito por todos os contribuintes.
A APC pretende reforçar o escrutínio sobre o bom uso do dinheiro público. Como é que este objetivo poderá ser alcançado?
Desde logo, através da promoção da literacia fiscal. Quanto mais informados forem os contribuintes, mais facilmente compreenderão o uso que o Estado dá à receita arrecada por impostos. Vamos, a seu tempo, monitorizar as despesas do Estado para compreendermos de que forma é que o Estado cumpre, através da despesa, os objetivos a que se propôs cumprir durante as eleições. Neste ponto, é importante realçar que a APC não é um partido político nem fará política fiscal. Respeitamos o processo democrático e os resultados das eleições. O que nós queremos é melhorar a fiscalidade, colocando-a efetivamente ao serviço do bem-comum coletivo.
A APC vai estar atenta à manutenção de "taxas e taxinhas" e de impostos extraordinários provisórios, que acabam por manter-se? Que iniciativas poderá tomar aqui?
A APC está no seu momento “0”. O nosso foco mais imediato é crescermos a nossa massa associativa. Temos uma meta ambiciosa de chegar aos 3.000 associados no final de 2024. Consideramos que este é um número que nos confere maior legitimidade para defendermos as nossas ideias, rumo à Concertação Social, que é onde almejamos chegar. No entretanto, vamos internamente debater propostas internas. Um bom exemplo de partida,
com o qual não nos podemos comprometer, é retomar o estudo que foi feito pela EY para a CIP. É muito importante percebemos, por exemplo, a necessidade das taxas, das contribuições que existem. Seguramente, umas farão sentido; e, seguramente, outras não. O país precisa desta informação para termos uma fiscalidade que promova o bem-comum. Dou um exemplo: tirar o passaporte em Portugal é mais caro do que em Espanha ou na
Alemanha, e tem uma validade mais curta. Isto não faz sentido nenhum.
A simplificação fiscal pode ser alcançada com a eliminação de taxas e taxinhas e contribuições (pouco ou nada) extraordinárias?
A simplificação fiscal pode ser alcançada de diversas formas. Como lhe disse, estamos no momento “zero” da APC. Para contribuirmos para um debate sério e aprofundado sobre a simplificação fiscal, é necessário, primeiro, termos um quadro completo das mil e umas taxas e taxinhas que existem. Temos, dentro da associação, capital humano extremamente talentoso. Nomeadamente o nosso Conselho Geral, que é composto por pessoas como Álvaro Nascimento, Ana Paula Dourado, António Nogueira Leite, Carlos Lobo, Carlos Loureiro, Cecília Meireles, Clotilde Celorico Palma, Daniel Bessa, Diogo Feio, Diogo Ortigão Ramos, João Líbano Monteiro, Luis Leon, Luis Magalhães, Pedro Santa Clara e Rosa Areias.
É urgente simplificar e tornar o sistema fiscal mais compreensível para trabalhadores, empresários e investidores? Que propostas tem a APC nesta área?
Sim, é urgente. E dou-lhe um exemplo simples: os trabalhadores independentes emitem recibos verdes no portal da Autoridade Tributária (AT), preenchem declarações periódicas de IVA no mesmo portal, depois numa data diferente têm de preencher os mesmos dados no portal da segurança social direta. Se, por algum motivo, houver um atraso, têm uma coima. Não faz sentido. O Estado é só um. O contribuinte deve focar-se no seu negócio e não em cumprir obrigações para facilitar o trabalho dos organismos do Estado. Porque não se criar um portal dos trabalhadores independentes que agregue todas as obrigações no mesmo local? Nas interações com a AT sente-se frequentemente que os técnicos não tiveram formação para atualizações legislativas ou sobre novas instruções da própria AT. Neste contexto, os contribuintes sentem que os próprios técnicos têm receio de tomar decisões desfavoráveis ao Estado e na dúvida tributam e o contribuinte que reclame ou impugne em Tribunal. Falta também consistência entre as práticas dos diversos serviços de finanças espalhados pelo país. Os especialistas dizem frequentemente que o "papel" que é preciso apresentar depende do técnico que está do outro lado. Noutros casos é a interpretação de uma norma que não é consistente em todo o país. Por exemplo, se vender a casa onde mora para comprar outra casa para morar, há serviços de finanças que aceitam que pode comprar e fazer obras e outros que entendem que só vale a compra ou as obras e não pode acumular. Ora o IRS na mais-valia da venda da casa onde se mora (que é o maior ativo da esmagadora maioria dos portugueses) não pode ficar entregue ao sabor donde cada técnico.
A AT perde grande maioria dos processos acima de 100 mil euros, que são julgados no Centro de Arbitragem, segundo uma análise estatística feita pelo CIDEEFF. Como avalia estes resultados?
É o resultado de algumas das repostas que já demos. Os contribuintes com processos acima de euro 100.000 são aqueles que têm acesso a especialistas que não se limitam a aceitar o que um determinado técnico da Autoridade Tributária decidiu. Por regra, já terá consultado especialistas sobre a interpretação das regras antes da Autoridade Tributária ter revisto e tributado. Como a atitude normal da Autoridade Tributária é, em caso de dúvida, tributar o contribuinte, é normal que depois em Tribunal exista uma percentagem elevada de vitórias dos contribuintes uma vez que estas decisões são fundamentadas no texto da lei e da intenção do legislador.
Quais são os impostos que geram maior litigância por parte dos contribuintes?
IRC, IVA e IRS são os que geram maior litigância até pela importância que têm no bolso dos contribuintes.
É preciso uma mudança de política no que diz respeito às garantias dos contribuintes?
Na nossa opinião, a evolução das garantias de contribuintes tem sido sempre no sentido do reforço da proteção do Estado e não do contribuinte. Em caso de litígios, o Estado pode executar o património do contribuinte até acabar o litígio a não que ser ele pague o imposto ou apresente uma garantia bancária que é muito superior ao valor do imposto que está a ser discutido.
O que traz de novo o OE2024 que diga respeito a garantias dos contribuintes e justiça tributária?
Nada digno de nota.
Partilha da ideia de que a legislação fiscal normalmente não é feita para assegurar e acautelar as garantias dos contribuintes, mas para arrecadar receita, sendo por isso muito pouco preocupada com os contribuintes que somos todos nós?
Sem qualquer sombra de dúvida e, em particular, desde o Programa de Ajustamento. O controlo do défice e a redução da dívida no PIB tem sido feito por aumento da carga fiscal sobre todos nós.
O Governo anunciou recentemente que vai rever a jurisprudência para avaliar matérias onde os "contribuintes tenham vindo sistematicamente a ganhar" para reduzir custos de litigância, mas também para identificar "as matérias que pareçam controvertidas mesmo junto dos tribunais" para criar "clareza jurídica”. É uma boa medida?
Sem dúvida que qualquer alteração legislativa para reduzir a litigância é bem-vinda. O ponto será a de saber em que sentido serão feitas as alterações.
Será que as alterações serão no sentido de alterar a lei para acomodar o que a Autoridade Tributária defendia (aumentando os impostos) ou no sentido defendido pelos contribuintes (reduzido a litigância)?
O Executivo anunciou também a criação de um grupo de trabalho para "rever obrigações declarativas" que sejam "desproporcionadas" ou onde haja duplicação. Até à conclusão dos trabalhos, quais são as obrigações declarativas que deveriam ser suspensas?
As obrigações existentes não podem ficar suspensas de um dia para o outro porque servem para apurar impostos, para controlo ou para fins estatísticos. Esta atitude é muito positiva, mas convém lembrar que não é a primeira vez que um trabalho destes é efetuado e os resultados ficam sempre aquém das expectativas (Simplex) ou que em pouco tempo são criadas novas obrigações declarativas que não existiam.
Em que medida os problemas em torno da litigância tributária em Portugal prejudicam o investimento e a eficácia e justiça do sistema fiscal?
A pergunta responde-se a si própria. Ninguém no seu perfeito juízo usa o seu dinheiro para algo sem saber quanto lhe vai custar ou quanto tempo vai levar para receber de volta o seu dinheiro se algo correr menos bem e tiver de ir para Tribunal. Ser empreendedor em Portugal é viver permanentemente assim. Isso explica, em parte, que o país não tenha uma cultura empreendedora e obviamente não é um ecossistema favorável ao investimento estrangeiro.