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Os últimos espiões

No seu livro de memórias, “O Túnel dos Pombos”, John Le Carré confrontou os seus leitores com uma das suas recordações mais sombrias. Não era um ajuste de contas entre espiões ou um assassinato sem sentido.

No seu livro de memórias, “O Túnel dos Pombos”, John Le Carré confrontou os seus leitores com uma das suas recordações mais sombrias. Não era um ajuste de contas entre espiões ou um assassinato sem sentido. Era algo mais simples: quando era novo viu um túnel onde punham os pombos que, largados, serviam os instintos dos atiradores. Mas os que escapavam à morte acabavam por regressar ao local de onde tinham partido. Para voltarem a ir para o terrível túnel. Os pombos são peões de um jogo que nunca acaba e que se repete ciclicamente como farsa. E, tal como os espiões (e, sobretudo, o referente máximo de Le Carré, o agente Smiley) tentam apenas ser verdadeiros consigo próprios, embora isso seja também uma tarefa muito difícil ou quase impossível. “Silverview”, é um livro póstumo de Le Carré. É neste equilíbrio que Le Carré forja um dos seus grandes livros. Onde as sombras se escondem nas entrelinhas. Está lá toda a fina e nobre arte de criação de ambientes, de segredos e traições, de sombras sem fim, como sempre nos apresentou, seguindo aquele que foi uma das suas maiores influências, Graham Greene.
“Silverview” é um livro sobre o mundo da espionagem na linha do que o autor sempre nos ofereceu. É sobre as razões que levam um agente já idoso, Edward Avon, cuja lealdade ao serviço nunca foi posta em causa, a passar-se “para o outro lado”. Na Guerra Fria isso era um hábito, mas porque é que isso sucede nos tempos mais recentes? Tudo tem a ver com o passado, quando esse agente idealista, ao ver o sangue jorrado na guerra da Bósnia, põe as suas velhas convicções em causa. Não por acaso ele baptiza a sua casa como Silverview em homenagem à habitação que o filósofo Nietzsche tinha em Weimar, Silberblick. Como Smiley, Le Carré sempre foi um apreciador devoto da cultura alemã. E esta paixão por Nietzsche tem a ver com o personagem: como diz a mulher, a secretíssima Deborah, Edward segue o filósofo, fazendo o que pensa, e não pensando o que faz. O idealista em tempos de puro pragmatismo amoral.
Há uma ironia na história: Julian Lawndsley abandonou a City, onde tinha sucesso no mundo da finança, para concretizar um velho sonho, ter uma livraria. Escolhe uma pequena localidade costeira, onde se cruza com excêntrico visitante, Edward. Este sabe tudo sobre o falecido pai de Julian, de quem foi colega, e mostra um grande interesse no futuro da livraria, fomentando o sonho em Julian: criar uma comunidade, a República da Literatura, que acolherá centenas de títulos, a começar por um de WG Sebald. Ao mesmo tempo, em Londres, um responsável pela segurança nos serviços de espionagem é alertado para uma fuga de informações e acaba por se pôr a caminho da cidade costeira. Isto porque Edward, conhecido como Florian, está a ver a sua história revistada. Temos defronte de nós um serviço de informações fragmentado, tal como a sociedade que depende dele.

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