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Mudanças à lei do trabalho aumentam clivagem entre PS e AD

Mudanças à lei laboral debatidas em concertação social esta quarta-feira acentuam o fosso nas posições de patrões e sindicatos. No campo partidário, o PS carrega nas críticas contra "grave retrocesso civilizacional", pede um "grande sobressalto cívico" e admite pedir uma audiência a Marcelo. "Não sei com quem é o que o Governo a quer negociar, mas não é seguramente uma proposta feita para o diálogo ao centro", diz ao JE o antigo secretário de Estado do Trabalho socialista Miguel Cabrita.

O debate ainda não chegou ao Parlamento mas a clivagem entre a coligação que sustenta o Governo (PSD/CDS) e o Partido Socialista (PS) em matéria de legislação laboral parece cada vez maior. Na véspera, depois de uma reunião com a União Geral dos Trabalhadores (UGT), o líder socialista considerou ser "mesmo necessário um grande sobressalto cívico" perante o "grave retrocesso civilizacional" que representa o pacote de mais de cem alterações ao Código do Trabalho desenhado pelo executivo de Luís Montenegro que volta esta quarta-feira a ser debatido em concertação social. 

José Luís Carneiro admitiu pedir uma audiência ao Presidente da República para o "sensibilizar" para a questão e alertou que o Chega está a procurar "funcionar como um autêntico cavalo de Troia para enfraquecer os sindicatos que historicamente têm representado os trabalhadores portugueses". Os socialistas receiam que as mudanças propostas venham a ser viabilizadas com o partido de André Ventura, à imagem do que já aconteceu noutras matérias.

O secretário-geral do PS acredita que medidas como as alterações nas regras da amamentação e o fim das faltas por luto gestacional vão cair na concertação social, tendo o Chega já demonstrado abertura para viabilizar todas as outras propostas, o verdadeiro "cerne do choque frontal com valores civilizacionais fundamentais" na ótica do líder socialista. As alterações em causa, vincou Carneiro, "ofendem particularmente os mais jovens, as mulheres e os trabalhadores mais vulneráveis".

Em causa estão, por exemplo, as mudanças nos contratos a prazo, cuja duração o Governo pretende passar dos atuais dois anos para três, assim como voltar a incluir nos critérios para este tipo de contratação quem está à procura do primeiro emprego (ou seja, os jovens). Outras medidas abrangem a flexibilização do horário para pais com filhos pequenos e o teletrabalho que, na prática, dão mais poder às empresas na decisão final. Além destas, a proposta de revisão laboral prevê a revogação da criminalização da omissão da contratação de trabalhadores à Segurança Social, que tinha sido aprovada em 2023 no âmbito da Agenda para o Trabalho Digno. "Vai voltar a atirar para a informalidade "milhares de trabalhadores do setor doméstico, da agricultura, da construção e da hotelaria". "É inaceitável", acentuou José Luís Carneiro.

Em declarações ao Jornal Económico (JE), o deputado socialista e antigo governante Miguel Cabrita reforça que o conjunto de propostas do anteprojeto do Governo não constitui uma reforma mas sim uma "contra reforma" e um "ajuste de contas" com o passado, "com os avanços que foram sendo produzidos e que deram resultados". 

"É uma proposta profundamente desequilibrada no seu conjunto e em que praticamente todas as medidas são para, no fundo, fortalecer uma das partes e enfraquecer outra. Só se equipara à que foi apresentada na altura da troika num contexto completamente diferente do que vivemos agora em que não temos intervenção externa e temos o emprego em máximos históricos", acentua, acrescentando ainda: "Quando olhamos para esta floresta de propostas, não conseguimos sequer encontrar uma árvore ou outra de medidas de compensações, de equilíbrios, de medidas a favor dos trabalhadores. No máximo, alguns arbustos."

No início desta semana, a ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho deixou um recado ao PS, dizendo, em entrevista ao ECO, esperar que os socialistas não levantem "linhas vermelhas intransponíveis", porque se o fizerem, "depois não nos podem censurar por negociarmos com outros".

Instado a comentar o aviso, Miguel Cabrita afirma não se tratar de "uma questão de linhas vermelhas, nem uma questão de clima ou de aproximação entre PS e AD".  "A questão fundamental aqui é a escolha que o Governo fez de apresentar uma proposta profundamente desequilibrada, que não parece orientada para a produção de equilíbrios que se constroem ao centro e com todos os atores do mercado de trabalho (...) Não sei com quem é o que o Governo a quer negociar, mas não é seguramente uma proposta feita para o diálogo ao centro", enfatizou o deputado. 

Seja como for, a bola está do lado do Governo, o "principal responsável pela condução do diálogo político e das condições para que esse diálogo possa existir", sublinha o antigo secretário de Estado do Trabalho e da Formação Profissional, recordando os apelos já feitos nesse sentido pelo líder do PS. "De facto, é uma proposta desequilibrada e orientada para a direita, com quem é que o Governo a quer negociar e como, é o Governo que tem de responder", pressiona o deputado.

Sobre a possibilidade de o PS pedir uma audiência ao Presidente da República para o "sensibilizar" para a questão, Miguel Cabrita sublinha que o partido "não fecha a porta" a essa iniciativa, mas por agora "vamos acompanhar atentamente a evolução da discussão e da posição do Governo e em função dessa evolução e do que nos parecer adequado também assumiremos as posições e desencadearemos as iniciativas", disse. 

Do lado do Chega, partido que desde logo desafiou o PSD para trabalharem numa proposta conjunta na revisão laboral, de modo a descartar o PS do processo legislativo, André Ventura criticou as alterações nas regras da amamentação e o fim do luto gestacional, mas sublinhou existir "caminho para andar" nas restantes medidas. Questionado pelo JE, o líder do Chega remeteu-se ao silêncio.

CIP abre o jogo, restantes confederações mais reservadas 

A Confederação Empresarial de Portugal (CIP) quer ver clarificado o conceito de inadaptação ao posto de trabalho em caso de despedimento, enquanto as restantes confederações empresariais mantêm reserva sobre as propostas que vão levar à reunião de concertação social. "O conceito de inadaptação [ao posto de trabalho] tem de ser detalhado", defendeu o presidente da CIP, em declarações à Lusa, indicando que esta é uma das propostas que a CIP vai levar na quarta-feira à mesa da concertação social.

Segundo Armindo Monteiro, com uma clarificação do conceito de inadaptação do posto de trabalho o objetivo é "evitar arbitrariedade" e "diminuir o contencioso" e a conflitualidade.

Por outro lado, a CIP aponta que a relação de trabalho "é muito diferente daquela que foi há 20 anos", pelo que considera que o Código do Trabalho atual está desajustado, defendendo que é necessário encontrar "um equilíbrio entre a vida a vida pessoal e a vida profissional".

No que toca à gestão do tempo de trabalho, a CIP considera que o atual código do trabalho "é muito baseado em relógio de ponto", pelo que vai defender a introdução de uma cláusula de modo a que se tenha em consideração "os indicadores de performance, que pode ser uma determinada tarefa ou determinado trabalho e a pessoa pode fazê-lo no horário que quiser".

A ideia é que determinados picos de atividade das empresas "possam ser compensados com períodos para o trabalhador sem atividade", sendo que "isso pode ser transformado depois em mais dias de folga ou em dinheiro", acrescenta o presidente da CIP.

Armindo Monteiro assegurou ainda que a CIP não tem "linhas vermelhas" e apelou a um espírito de abertura por parte dos diversos parceiros sociais, defendendo que a discussão da revisão laboral "é demasiado importante para se tornar numa discussão político-partidária".

As restantes confederações empresariais mantêm uma postura de reserva, não abrindo o jogo relativamente às propostas que vão levar à reunião de hoje.

"Para a CCP [Confederação do Comércio e Serviços de Portugal] é fundamental que a legislação laboral em Portugal deva convergir com os imperativos de aumento da produtividade e da competitividade necessárias à economia portuguesa, adaptando-se àquelas que na prática são as novas dinâmicas provocadas pelas transformações, em particular as consequências altamente impactantes das evoluções tecnológicas, o que envolve naturalmente quer as empresas quer os trabalhadores", apontou fonte oficial.

A confederação liderada por João Vieira Lopes sublinhou ainda que o anteprojeto do Governo não é uma "profunda reforma", mas, ainda assim, apresenta "várias soluções que vão ao encontro das aspirações dos agentes económicos" e indicou que pediu aos seus associados que até ao final da semana passada enviassem o seu parecer, bem como "outras questões que considerem relevantes", tendo em vista que estes contributos sejam incluídos nas propostas de alteração que vão apresentar ao Governo.

Na segunda-feira, à saída da audiência com o Presidente da República e confrontado com as críticas das centrais sindicais, o presidente da CCP apelou a que se consiga alcançar uma "plataforma de acordo" em concertação, lembrando que já foram alcançados acordos "mesmo em períodos complicados", como a troika.

A Confederação do Turismo de Portugal (CTP), por sua vez, reiterou que "é positivo que o Governo se mostre disponível a revisitar este importante tema" e, no geral, considera "a proposta do executivo como positiva, equilibrada e que permite incutir competitividade no mercado laboral".

Ainda assim, "há melhorias" que a CTP quer propor, mas para já considera "prematuro anúncio público destas propostas", vinca fonte oficial, em resposta escrita à Lusa.

Por seu turno, a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) afirmou que "parte com confiança e otimismo para a negociação" e sublinha que "no essencial" se revê no anteprojeto do Governo, ainda que, tal como as restantes confederações patronais, admita que "há sempre margem para melhoria".

A revisão da lei laboral, é "um passo necessário para, por um lado, garantir a sustentabilidade dos modelos de trabalho num contexto altamente dinâmico, digital e tecnológico, o que implica necessariamente a dinamização do modelo de contratação coletiva; e, por outro, clarificar dúvidas que existem, à data, sobre pontos específicos da atual legislação laboral", acrescentou fonte oficial, em resposta escrita enviada à Lusa.

Centrais sindicais descontentes

Já as centrais sindicais têm sido bastante críticas do anteprojeto denominado "Trabalho XXI", considerando que a proposta "fragiliza os direitos dos trabalhadores". O secretário-geral da CGTP entende que "há duas ou três medidas" no anteprojeto de revisão da legislação laboral  que são inconstitucionais, dando como exemplo "a facilitação dos despedimentos".

"Como é que o Governo pode colocar na sua proposta que um trabalhador alvo de um processo disciplinar com intenção de despedimento, que recorra a tribunal para contestar o despedimento, [...] e que ganhando o processo em tribunal, o patrão possa negar a reintegração desse trabalhador?", questionou, frisando que a Constituição impede o despedimento sem justa causa.

Outro exemplo levantado pelo secretário-geral da CGTP diz respeito à contratação coletiva, que, segundo o responsável, "coloca nas mãos de patrões a decisão de qual é a convenção coletiva a aplicar nas empresas", o que viola "a liberdade de associação dos trabalhadores".

Nesse sentido, a CGTP apela ao executivo para que retire a proposta e diz que vai voltar a levar a apresentar ao Governo propostas que regulem os horários de trabalho e que combatam a precariedade. Marcada por esta central sindical, para o dia 20, está já uma greve e manifestações contra as propostas do Governo. 

Também a UGT rejeita o anteprojeto de revisão laboral, pelo que insta o executivo a trazer "propostas diferentes" na reunião de concertação social desta quarta-feira.

"Se não houver disponibilidade do Governo, se continuar intransigente e os restantes parceiros, esse é um bom motivo para encetarmos fórmulas de luta, entre elas, não excluindo a greve geral, naturalmente, com outras organizações sindicais. Isso não pode estar excluído", disse, acrescentando que a central sindical "recorrerá a todas as fórmulas que estão ao seu alcance para inverter uma situação de intransigência que venha a surgir na concertação social".

O sindicalista assumiu, porém, que nesta fase ainda é cedo para decidir o que vão fazer e mostrou-se disponível para o diálogo. Mas com "limites", também avisou.

Com Lusa