O juiz do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro Gilmar Mendes considera que a inexistência de um acordo comercial entre a União Europeia (UE) e o Mercosul não é essencial para o Brasil, que o pode compensar fazendo acordos com outros países e blocos económicos.
Numa conversa promovida pelo Jornal Económico (JE) e a coluna “Gente de Cá e de Lá”, de José Manuel Diogo, do jornal brasileiro “Folha de S. Paulo”, parceiro do JE, Gilmar Mendes defendeu que o Brasil tem riquezas e capacidade para ser uma das economias líderes no mundo.
“Apostou-se muito no acordo Mercosul-UE, que, aparentemente, conta com resistência até mesmo da França por razões muito provavelmente comerciais. Mas outros acordos se abrem, o mundo depende muito de alimentos e nós temos essa capacidade”, declarou.
A UE e o do Mercosul – Mercado Comum do Sul chegaram a um entendimento político sobre o acordo comercial entre os dois blocos, em 2019, que não foi ratificado, levantando-se novas questões, ambientais, pela parte europeias, nomeadamente França.
Foi feito um esforço para concretização do acordo, no último semestre do ano passado, quando o Brasil ocupava a presidência rotativa do Mercosul, mas sem sucesso.
O acordo UE-Mercosul abrange os 27 Estados-membros da UE mais Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e, agora, a Bolívia, o equivalente a 25% da economia global e 780 milhões de pessoas, quase 10% da população mundial.
“Fala-se muito das revoluções industriais, inclusive da revolução tecnológica, e se esquece que no Brasil nós fizemos uma revolução na área da agricultura”, afirma Gilmar Mendes ao JE. “Em espaços relativamente pequenos nós conseguimos uma produtividade muito grande graças à tecnologia”, garante.
“Nós somos a nona economia do mundo e, se tivermos sorte e juízo, muito provavelmente estaremos entre as sete, seis, cinco [economias]. Isto é, podemos e temos as condições para estarmos entre as nações líderes do mundo”, defende.
“Nós temos as melhores condições, por exemplo, para a energia limpa; 80% ou mais da nossa energia vem da água. Nós temos um potencial enorme para hidrogénio verde, nós temos um potencial enorme para a energia solar, energia eólica. Temos um parque industrial respeitável, temos um mercado consumidor grande, portanto, em rigor nós temos mais do que um potencial, temos muitas riquezas que faltam, que são carências mundo afora, a nossa riqueza mineral é significativa. No petróleo, temos embates, mas muitos estão animadíssimos com a transformação de regiões pobres da Amazónia, com o apoio da possibilidade de petróleo na chamada foz do Amazonas, que não tem nada de comprometer o meio ambiente. A Guiana está a fazer isso”, acrescenta.
Mendes considera que, com o novo governo, com a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil voltou a ter um papel relevante internacionalmente. “É um mundo diferente e nós temos de ter muito cuidado, mas eu acho que foi extremamente positiva, a mudança. Lula [da Silva] é um cidadão do mundo, ele conversa com as diferentes forças e é reconhecido como um líder democrático”, diz, acrescentando que Portugal e os países lusófonos têm um papel a desempenhar. “Acredito que o Brasil volta a ser um importante player internacional e é fundamental que nós tenhamos atenção para com Portugal, para com os países lusófonos”, afirma.
O juiz defende que o Brasil deve saber aproveitar a relação com Portugal, pela influência que o país tem na UE, especialmente, “agora, com a designação muito benfazeja do [António] Costa para a presidência do Concelho Europeu”.
“Costa é um amigo do Brasil, que sempre falou em prol do acordo Europa-Mercosul”, diz, sublinhando que “Portugal sempre apoiou o Brasil nos seus pleitos. se nós olharmos os diferendos nas assembleias internacionais isto é notório e nós temos de perceber esse papel e nos valer, inclusive, desta boa integração de Portugal na União Europeia”.
STF interventivo
Gilmar Mendes, nesta altura o decano do STF, onde está há 22 anos e ao qual presidiu entre 2008 e 2010, esteve em Portugal por ocasião do Fórum Jurídico de Lisboa, de que é um dos promotores e foi organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, pelo Lisbon Public Law Research Centre da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas.
Decorreu entre 26 e 28 de junho, sob o tema “Avanços e recuos da globalização e as novas fronteiras: transformações jurídicas, políticas, económicas, socioambientais e digitais”.
Questionado, considera que o STF viveu os seus tempos mais importantes durante a presidência de Jair Bolsonaro, que ocupou o Palácio do Planalto entre 2019 e 2022.
“Nunca o tribunal tinha sido tão desafiado. Sempre houve críticas, e é compreensível, [porque num] tribunal com ampla competência sempre há críticas, como se critica também a corte constitucional [o Tribunal Constitucional] em Portugal e a corte constitucional na Alemanha; é normal”, diz. “É, até, uma forma de corrigenda, de se fazer projetos de ‘olha, talvez aqui a corte não tenha atuado bem’. Mas nós nunca tivemos, em nenhum momento, e nem se esperava, a ideia de um governo que contestasse o judiciário e que parecesse ter um projeto de supressão a partir de um discurso que se popularizou”, afirma. “As pessoas nas ruas, nas manifestações de Bolsonaro, gritavam Supremo somos nós. Portanto, supremo é o povo, o povo somos nós que estamos na rua”, lembra.
Recorda o período da pandemia de covid-19, que no Brasil foi marcado por um conflito institucional e político: “Diante do negacionismo do governo, o tribunal foi intervencionista, fortaleceu estados e municípios para que eles aplicassem ali a recomendação da OMS [Organização Mundial de Saúde] de isolamento social, medidas de prevenção”, diz. “[essa situação] deu ao governo federal o discurso de que ele não tinha uma política pública de saúde porque nós a invalidávamos ou impedíamos e tudo isso fez com que os seguidores do governo, que são muitos – nós vimos que nas eleições tivemos um resultado muito apertado –, passaram a acreditar que o grande mal do Brasil seria o Supremo Tribunal Federal, que Bolsonaro não desenvolveu uma política pública adequada de saúde graças ao impedimento do tribunal, quando nós víamos que ele não tinha uma política pública”, afirma.
Mendes considera que ainda não foi possível atenuar esta divisão interna, que persiste. “A polarização existe. Eu tenho a impressão de que, especialmente a extrema-direita, ela precisa da polarização, ela precisa de gestos extremados”, afirma, alertando, no entanto, que não se deve “confundir a extrema-direita com as pessoas que têm posições de centro-direita que são absolutamente legítimas e normais”, mas lembrando que há posições que levam a radicalismos.