A tecnologia para o sector jurídico esteve em destaque na Web Summit deste ano, uma vez que o prémio do maior concurso da conferência foi entregue à brasileira Inspira, uma legaltech de Inteligência Artificial generativa. O made in Portugal nesta área também se fez representar no Parque das Nações, como a startup portuguesa Contractuall, uma das 115 empresas escolhidas pela Startup Portugal.
Numa breve entrevista ao Jornal Económico, o empreendedor Miguel Matos, cofundador da Contractuall, conta como nasceu a ideia e revela que, assim que a equipa apresentou o primeiro protótipo, recebeu dois processos de procuradoria ilícita por parte da Ordem dos Advogados.
Como o próprio nome indica, a Contractuall criou uma plataforma online que permite fazer contratos (de trabalho, arrendamento de imóveis, compra e venda de carros ou mercadorias...), através de minutas personalizáveis. Ou seja, através deste sistema o utilizador responde às perguntas de um advogado e, de forma automática, obtém as cláusulas que lhe interessam. A assinatura é digital e depois é emitido um PDF com os dados preenchidos.
Quando tiveram a ideia de lançar a empresa e qual o processo até a estabelecerem?
A ideia surgiu quando ia comprar um produto usado online ter-me questionado sobre a possibilidade de abrir a encomenda e deparar-me com uma pedra numa caixa. Essa desconfiança foi recorrente em várias situações, levando-me a pensar que instrumento de paz permitiria acelerar estas transações.
Discutindo a ideia num concurso de tecnologia na sociedade de advogados Vieira de Almeida, juntamente com um futuro membro da empresa e outros advogados, percebemos que a solução passava por desenvolver contratos de maneira muito prática, evitando o “legalês”.
Enfrentámos desafios ao determinar o que era viável devido ao estatuto da Ordem dos Advogados. Para garantir a solidez e seriedade da solução, fizemos equipa com um advogado. Com a equipa formada e um protótipo em mãos, participámos num programa de aceleração de startups relacionadas com a área do direito na SRS Legal e depois criámos a empresa para testar a Contractuall no mercado.
Angariámos zero euros. Muito em breve iremos iniciar a angariação da nossa primeira ronda de financiamento para acelerar a nossa entrada noutros países da Europa.
Quanto capital angariaram desde então?
Angariámos zero euros. Para entrar no mercado português não foi necessário angariar capital, queríamos testar como chegar ao cliente e como o produto tem de ir ao encontro às necessidades do cliente. No entanto, muito em breve iremos iniciar a angariação da nossa primeira ronda de financiamento para acelerar a nossa entrada noutros países da Europa.
No início, recebemos dois processos de procuradoria ilícita. Apresentámos o protótipo a um sábado e na segunda-feira de manhã já tínhamos notificação da Ordem. Não praticamos nenhum ato próprio de advogado.
Como é a vossa relação com a Ordem dos Advogados?
Enquanto partilhávamos o nosso pequeno protótipo recebemos dois processos de procuradoria ilícita. Partilhámos o protótipo pela primeira vez num sábado e segunda-feira de manhã já tínhamos recebido uma notificação da Ordem dos Advogados.
Temos um advogado enquanto sócio e esclareceu a situação. Nós não praticamos nenhum ato próprio de advogado. Apesar dos autores serem advogados, não visamos substituir o conselho do advogado, aliás, até recomendamos que peçam ajuda a advogados.
Este serviço até sempre existiu e continua a existir, mas principalmente em livro. Estes livros são comprados muito pelos próprios advogados, mas devido às limitações de funcionalidades de um livro a Contractuall, sendo uma plataforma, cria valor acrescentado através da atualização regular dos conteúdos e da personalização das minutas. Cada vez mais os advogados em início de carreira irão aderir a estes serviços face aos livros.
E com as sociedades? Já trabalham diretamente com escritórios ou apenas advogados em prática individual?
Trabalhamos com ambos. A Contractuall é também uma comunidade de advogados-autores. Qualquer advogado pode entrar em contacto connosco e publicar um contrato como se de um livro tratasse, sendo remunerado através de direitos de autor. Descobrimos que a tarefa de redigir um contrato é muito semelhante a programar, só que não é em Java nem Python, mas em Português. A Contractuall permite ao advogado fazer esta programação cobrindo numa minuta vários cenários.
O que acha sobre a ligação dos advogados a estas soluções ou startups de legaltech?
Em alguns casos, advogados mostram ceticismo em relação à capacidade da tecnologia em resolver problemas reais. Procuram exemplos específicos nos quais ela falha, e com razão, já que muitas soluções tecnológicas apenas acrescentam complexidade sem solucionar efetivamente os problemas. Outras vezes, percebo um receio do desconhecido, um medo das buzzwords, como IA [Inteligência Artificial] ou blockchain, alimentando a ideia de uma competição impossível.
Como engenheiro, observo que serviços jurídicos de menor complexidade estão a ser mais frequentemente consumidos, embora com menor intervenção direta dos advogados. No entanto, estimo que este consumo possa levar a uma maior procura de serviços de maior valor dos advogados. Um exemplo disso é a Contractuall, que possibilita aos portugueses criarem contratos para situações em que antes nem consideravam formalizar um acordo, como contratos altamente personalizados para obras de pequeno valor.
É irrealista procurar um advogado para uma obra de mil euros, quando este poderá cobrar 300 euros, mas através da Contractuall, obtêm a proteção legal necessária. Com essa maior proteção, os cidadãos podem chegar mais rapidamente a situações onde o aconselhamento jurídico realmente agrega valor, além dos casos de incumprimento. Há sérias oportunidades para agregar valor nas legaltechs para os advogados, possibilitando uma mudança no atual paradigma de faturação por hora.