Ao cabo de quatro anos de intenso bombardeamento por parte da administração do ex-presidente Donald Trump, as relações entre os Estados Unidos e a China só pioraram desde que Joe Biden chegou à Casa Branca. Não foi propriamente uma novidade: ainda candidato, o democrata explicou que a China era o pior pesadelo para os Estados Unidos. Como salienta o analista Francisco Seixas da Costa, os Estados Unidos têm uma intensa necessidade de, para consumo dos equilíbrios internos muitas vezes instáveis, produzir inimigos extrafronteiriços que mantenham acesa uma chama nacionalista que serva de elemento agregador.
Ora, tudo parecia indicar que a Rússia cumpriria fidedignamente esse papel. Por outro lado, nos últimos meses da administração Trump, China e Estados Unidos voltaram a sentar-se à mesa das negociações para dirimirem os diferendos na área das alfândegas. As negociações arrastaram-se mais que o previsto, mas tanto as declarações de empresários norte-americanos como os investidores de Wall Street deram mostras de apoiarem esta aproximação. Nada feito: Biden não as quis continuar e a precipitação com que as tropas norte-americanas deixaram o Afeganistão meio ano depois fez o resto: acossado no seu próprio país, o democrata teve mesmo que recorrer á criação de um inimigo poderoso que o livrasse dos apertos internos (até com o seu próprio partido). Seixas da Costa não tem dúvidas que, apesar de todas as iniciativas mal explicadas de Pequim, a guerrilha que Biden move contra o antigo Império do Meio tem a sua grande explicação em motivações de política interna.
Ora, neste quadro, a criação da tríplice aliança estratégica e militar entre os Estados Unidos, o Reino Unido e a Austrália (AUKUS) fechou portas a qualquer entendimento entre Washington e Pequim. Numa retórica desusadamente agressiva – e ‘traindo’ de uma assentada a União Europeia e toda a arquitetura da aliança transatlântica construída desde 1945 –, Joe Biden impôs uma geoestratégia que Xi Jinping apelidou, não sem razão, de regresso da Guerra Fria.
A explicação para o AUKUS está pendurada nos acontecimentos recentes em Hong Kong e na hipótese de Pequim querer endurecer as suas relações com Taiwan, mas os analistas tendem a preferir uma explicação mais prosaica: os Estados Unidos vivem no pânico de deixarem de ser a maior economia do mundo. Contas simples deixam antever que a China, atual segunda classificada, terá poucas dificuldades em, dentro de pouco tempo, ultrapassar a rival. E isso é tudo o que Biden – e possivelmente o próximo presidente norte-americano, seja quem for e de que partido for – quer evitar.
É essa a explicação para que a outra parte da retórica norte-americana em relação á China seja explicar aos aliados tradicionais – União Europeia incluída – que não podem estar ao mesmo tempo do lado da China e dos Estados Unidos. A acreditar nas crónicas, Biden encostou a Austrália à parede: nunca o país tinha aceitado escolher entre uma das duas superpotências em detrimento da outra, mas o presidente norte-americano terá assegurado a Camberra que, se não houvesse uma escolha clara, deixaria cair o compromisso de segurança com o país.
No quadro de uma estratégia internacional que tem sido não só errática como inconsequente e difícil de fazer entender (principalmente pelos aliados), esta postura de Biden não só afastou as duas superpotências durante largos anos, como obrigou Bruxelas a rever a qualidade da sua aliança estratégica com os Estados Unidos. Daí o facto de a possibilidade da criação de um exército europeu ter voltado ao topo da agenda. Daí também o facto de a Comissão Europeia ter recebido com grande frieza a criação do AUKUS. Como daí também o facto de os 27 não terem envidado grandes esforços para optarem entre China e Estados Unidos.
Mas, para todos os efeitos, tudo indica que a relação entre a China e os Estados Unidos continuará a degradar-se ao longo de 2022. Para compensar, a relação entre a China e a Rússia vai no sentido exatamente contrário – mas ninguém acredita que Biden não tenha antecipado essa evidência.