O mercado da contabilidade e auditoria pode parecer estagnado, mas tem estado a preparar-se para os próximos tempos. Consistentemente sob pressão devido a polémicas que fazem correr tinta nos jornais, as empresas têm estado a investir na diversificação dos serviços, nomeadamente através de consultoria e outras vertentes de assessoria financeira. É o que se passa na maior economia do mundo e deverá inspirar os operadores de menor dimensão.
Quase metade (49%) dos escritórios contactados pela revista norte-americana “Accounting Today” disseram que preveem despender mais tempo em advisory ao longo deste ano. Mais: um relatório recente da Wolters Kluwer concluiu que, nos últimos três anos, foram incluídos mais serviços de assessoria e compliance fiscal, independentemente da dimensão da empresa.
O contexto é compreensível: uma série de desafios que se prolongam há vários anos, nomeadamente a pouca compreensão do sector. “Nos países latinos, onde Portugal se inclui, por oposição aos anglo-saxónicos, a importância da auditoria é ainda pouco compreendida e considerada mais um custo de contexto, não sendo utilizadas as grandes vantagens da sua ação, quer para os utilizadores da informação financeira quer para os próprios acionistas”, alerta a diretora do curso de Contabilidade e Auditoria da Coimbra Business School (ISCAC) ao Jornal Económico (JE).
Para Cristina Gonçalves Góis, “a pressão sobre a indústria de auditoria é enorme” e está a intensificar-se devido aos critérios ESG, cujos relatórios chegam a estar na linha da frente da manipulação. “Os auditores enfrentam agora negócios cada vez mais complexos e áreas de intervenção mais vastas, pois, além da auditoria da informação financeira, são agora chamados a auditar a informação não financeira, como os relatos da sustentabilidade, que, pela sua subjetividade, são muito mais propícios à gestão da informação apresentada ou, se quisermos utilizar uma expressão menos soft [leve], sujeitos à manipulação da informação”.
Concentração divide
Questionada sobre se hánecessidade de mais concentração, afirma que não traz melhor qualidade ao trabalho destes profissionais. “Apesar de a concentração poder criar as condições para uma maior especialização, na minha opinião, apenas um auditor que tenha uma visão mais integrada pode identificar os riscos associados à informação apresentada pelas organizações aos seus stakeholders”, afirma a responsável do ISCAC.
Por outro lado, Maria Cravo, sócia-gerente da Oliveira, Reis & Associados (ORA SROC), acredita que a convergência “irá trazer benefícios”, designadamente “em matéria de otimização de recursos, ganhos de escala e aproveitamento de sinergias em termos de recursos e especialização. No entanto, é muito importante que esse nível de concentração seja equilibrado para garantir um nível de concorrência que continue a promover a qualidade, a inovação e a independência dos serviços de auditoria, além da mitigação dos riscos de conflitos de interesse”, defende, em declarações ao JE.
Na visão de Maria Cravo, é um movimento que poderá responder a “todas as exigências, regulamentações e escrutínio público”, que é elevado devido a escândalos financeiros e falhas em auditorias que vão minando a credibilidade dos auditores. “Esses incidentes têm levantado questões sobre a eficácia, a independência e a integridade do processo de auditoria. É necessário reverter este cenário e recuperar a confiança no trabalho dos auditores. Para isso, houve nova regulamentação da profissão acompanhada por apertada supervisão do trabalho desenvolvido pelas sociedades de auditoria”, recorda a especialista.
Tecnologia a duas velocidades
Há outro tema que está a marcar a agenda destas empresas: a introdução – a sério - de novas tecnologias. Em Portugal, provavelmente devido à dimensão do mercado, existem poucos dados sobre a adoção de Inteligência Artificial (IA) generativa nos processos de auditoria. No entanto, de acordo com um estudo global da KPMG, não só as organizações esperam que os seus auditores recorram a IA como quase três quartos (72%) instalaram ferramentas dessas para reporte financeiro (pilotos ou utilização efetiva) e a percentagem deverá aumentar para quase 100% nos próximos três anos.
Aliás, as empresas têm expectativas de que os seus auditores sejam ainda mais críticos na avaliação da IA que ambos utilizam, segundo o relatório “AI in financial reporting and audit: Navigating the new era” (“IA em relatórios financeiros e auditoria: A navegar na nova era”), que envolveu entrevistas a representantes de 1.800 empresas. No total, 64% participantes admitiram esperar que esses profissionais façam uma análise com maior profundidade à IA que têm para os relatórios financeiros, embora reconheçam que a regulamentação carece de progressão.
Além de mais capacidades analíticas e insights, “as empresas esperam que o seu auditor externo utilize a IA nos processos de auditoria para atingir três principais objetivos: melhorar a eficiência e a precisão das auditorias; desenvolver procedimentos mais proactivos, contínuos e preditivos; recolher dados e informações de valor acrescentado para a auditoria”, lê-se no estudo. “Vai potenciar o trabalho do auditor, pois vai aumentar o número de confirmações que não estão sujeitas a amostra, já que graças à nova tecnologia, em certos trabalhos, passa a ser possível confirmar a totalidade dos acontecimentos, o que até agora não era possível”, corrobora Cristina Gonçalves Góis.
Não obstante as vantagens, “é um desafio colossal a todas as organizações da sociedade, mas é ainda maior para a contabilidade e para a auditoria”. “No campo da auditoria, este desafio é superior, pois a auditoria de informação contabilística produzida por IA torna o trabalho do auditor ainda mais complexo e exige maior nível de conhecimento das estruturas de funcionamento das tecnologias para poder auditar o seu funcionamento, a forma como essa informação é produzida e como identificar situações de erro ou fraude”, explica a docente académica.
Porém, há claramente duas velocidades neste tipo de investimentos, ainda que a generalidade os players lhes reconheçam importância. “As grandes auditoras tendem a adotar estas práticas de forma mais rápida atuando como referência do mercado. Nas restantes empresas, esta evolução tende a ocorrer a um ritmo mais lento. No nosso caso, temos efetuado avanços e investimentos nesta área e, apesar de ainda não usarmos IA generativa nas nossas auditorias, não excluímos essa hipótese no curto prazo”, avançou ao JE a sócia gerente da ORA SROC, acrescentando que a sociedade está neste momento à procura de uma solução (à venda ou em desenvolvimento) que, dentro do orçamento que têm disponível, lhes garanta, qualidade, eficiência e, consequentemente, mais valor junto dos clientes.
A questão que se coloca é simples, então, o que é que as empresas esperam dos auditores no futuro? Essencialmente, quatro coisas: revisão mais detalhada do ambiente sob controlo (64%), avaliação da maturidade da governação da IA (53%), confirmação de terceiros sobre a utilização da IA (34%) e, curiosamente, exatamente o mesmo papel que desempenham agora com o uso da tecnologia (24%).