Um pouco por todas as principais capitais do globo parece ter sido estabelecida e tacitamente aceite a regra segundo a qual o novo poder na Síria deu mostras suficientes para garantir um mínimo de estabilidade imediata que permita, por um lado, afastar o perigo de uma guerra civil e, por outro, promover um governo de unidade nacional. Perante as movimentações populares em favor dos que derrubaram o regime de Bashar al-Assad no passado domingo e a moderação do grupo radical Hayat Tahrir al-Sham (HTS), vários países decidiram apoiar os principais intervenientes.
Assim, segundo avança a imprensa britânica, o HTS pode ser removido da lista do Reino Unido de organizações terroristas proibidas, indicou Downing Street. O porta-voz do primeiro-ministro disse que os acontecimentos na Síria são “uma situação em evolução” e que a lista pode ser revisitada a qualquer instante. Houve apelos para que o gabinete de Keir Starmer reconsiderasse a ‘notação’, até porque as regras impõem que o governo não pode manter qualquer relação com os grupos que fazem parte da lista de ‘proscritos’, Ou seja, se o HTS se mantiver na lista, o Reino Unido não poderá participar – a não ser a coberto da espionagem – em qualquer solução para a Síria, o que seria, do ponto de vista diplomático, um erro inaceitável.
Pat McFadden, o ministro do Gabinete, disse que “a situação é muito fluida” e que os ministros “analisariam a questão nos próximos dias”. “O HTS foi proscrito por muito tempo”, disse McFadden ao programa BBC Radio 4 Today. “O líder do grupo distanciou-se de alguns” erros do passado e neste momento “está a dizer algumas das coisas certas sobre a proteção das minorias, sobre o respeito pelos direitos das pessoas.” Se a situação se estabilizar, “haverá uma decisão a ser tomada sobre como lidar com qualquer novo regime que esteja em vigor", disse.
O HTS foi remetido para o ‘index’ britânico em 2017 por causa da sua associação com a Al-Qaeda, mas o líder do HTS, Abu Mohammed al-Jolani, cortou os laços com a Al-Qaeda desde então.
Por seu turno, a Rússia, o maior aliado de al- Assad , confirmou que o líder deposto fugiu para Moscovo e ali pediu asilo. Mas, aparentemente, não será por isso que o Kremlin deixará de lançar pontos para os novos detentores do poder – até porque pretende garantir o futuro das suas bases militares na Síria.
Segundo a imprensa russa, Moscovo parece estar a recorrer à diplomacia para preservar a sua influência na Síria, envolvendo-se em atividades com os rebeldes que havia rotulado como terroristas apenas alguns dias antes. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que as autoridades russas estão a tomar todas “as medidas necessárias para estabelecer contacto na Síria com aqueles que são capazes de garantir a segurança das bases militares” – o que parece ter sido conseguido junto do novo poder. As duas bases russas na Síria são críticas para os interesses de Moscovo: as instalações de Tartus dá à Rússia acesso a um porto de águas quentes, enquanto a base aérea de Khmeimim serve de posto de ligação com a África. Nas últimas horas, a imprensa russa com ligações ao Estado suavizou notoriamente a retórica que usava em relação ao HTS. Entre outras ‘subtilezas’, o grupo deixou de ser “terrorista” para passar a ser “oposição armada”.
Do mesmo modo, e segundo a imprensa norte-americana, a administração Biden também pode retirar o HTS da sua própria lista de organizações e indivíduos proscritos. Um alto funcionário do governo citado pelo “The Washington Post” disse que o HTS é "um amplo caleidoscópio de grupos e acho que temos que ser inteligentes e muito conscientes e pragmáticos sobre a realidade local". Mesmo assim, a administração Biden – que nas últimas semanas tem surpreendido pela negativa muitos analistas das relações internacionais do país – não quis dar nenhuma resposta oficial sobre a matéria. O grupo foi colocado na lista negra norte-americana durante o primeiro mandato de Donald Trump. Oficialmente, o presidente do Irão, Masoud Pezeshkian, disse que o povo sírio é quem deve decidir o futuro do seu país e do sistema político. Pezeshkian fez o comentário durante uma reunião de gabinete e, segundo a imprensa do país, enfatizou a importância de preservar a unidade, a soberania e a integridade territorial da Síria, bem como o diálogo entre diferentes grupos sírios para chegar a um entendimento sobre a situação no país. Expressou esperança de que a violência acabe na Síria o mais rapidamente possível. Pezeshkian também referiu a necessidade de proteger a segurança dos cidadãos sírios e dos outros residentes, dos locais sagrados e das missões diplomáticas. O presidente iraniano disse que o seu país continuará as negociações diplomáticas com as partes relevantes e as Nações Unidas para ajudar a estabilizar a situação e proteger a segurança e a estabilidade regionais. Vale a pena recordar que a esmagadora maioria dos rebeldes sírios é sunita e que o Irão é xiita – o que tem sido sempre o ponto de rutura entre os dos lados.
Por seu turno, o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Volker Turk, afirmou esta segunda-feira que a Síria deve começar uma nova fase do país após a queda do regime do ex-presidente Bashar al Assad. Em declaração para marcar o Dia dos Direitos Humanos, em Genebra, aquele responsável salientou haver esperança de que esta é uma oportunidade para o país construir um futuro baseado em direitos humanos, na liberdade e na justiça.
As saídas do presidente e do primeiro-ministro do poder foram anunciadas quase duas semanas após a ofensiva de grupos rebeldes que tomaram as províncias sírias de Alepo, Hama, Homs e Idlib. Horas depois, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que o futuro da Síria é uma questão a ser determinada pelos sírios e enfatizou haver muito trabalho por fazer para garantir uma transição política ordenada para instituições renovadas. Na sua mensagem, Guterres reiterou o seu apelo à calma e a que se evite a violência neste momento sensível, ao mesmo tempo que pediu a proteção dos direitos de todos os sírios sem distinção.
Entretanto, aquele que deverá ser o novo primeiro-ministro é uma personalidade há muito ligada à oposição a al-Assad e um dos responsáveis pela ‘zona livre’ que foi surgindo na Síria à margem do regime. Mohammed al-Bashir, nascido em 1983, é engenheiro e era até agora o líder do governo de salvação sírio criado em 13 de janeiro de 2024 – e que, evidentemente, nunca foi reconhecido pelo regime de al-Assad. Al-Bashir nasceu na região de Jabal Zawiya , na província de Idlib, e formou-se na Universidade de Aleppo. Em 2011, trabalhou na fábrica de da Syrian Gas Company.
Al-Bashir foi diretor de Educação Islâmica no Ministério da Educação durante dois anos e meio, para mais tarde assumir funções como diretor adjunto e depois Diretor de Assuntos das Associação no Ministério de Desenvolvimento e Assuntos Humanitários. Entre 2022 e 2023, foi ministro de Desenvolvimento e Assuntos Humanitários, em substituição de Ali Keda.
Em janeiro de 2024, o Conselho Shura do Governo da Salvação (em Idlib) votou para eleger al-Bashir como primeiro-ministro. Quando em novembro passado, o grupo HTS lançou a ofensiva do noroeste da Síria, levando à captura de Aleppo e aumentando significativamente a extensão dos territórios controlados pelo Governo da Salvação, o seu nome passou a circular entre os ‘ministeriáveis’. Al-Bashir foi encarregado de formar um governo de transição depois de Abu Mohammad al-Julani se ter encontrado com o ex-primeiro-ministro sírio, Mohammad Ghazi al-Jalali, para organizar uma transferência de poder.
À margem de todas estas movimentações diplomáticas – ou seja, à margem do interesse geral da comunidade internacional – Israel passou o dia de segunda-feira da mesma forma que o de domingo: atacando bases iranianas na Síria e tentado baixar a capacidade de resposta dos xiitas em território sírio. Sem atender a qualquer pressão ou tentativa de alinhamento com os restantes países com interesses na região, Israel optou por aproveitar a destituição do regime para tentar encontrar vantagens militares na Síria.