O Tribunal de Contas (TdC) sublinha a importância de se manter o "rigor técnico" na avaliação das necessidades de financiamento a propósito do processo de descentralização, criticando a falta de informação consolidada e de mecanismos transparentes para este fim. Como tal, e além de lembrar que os prazos de reporte não foram cumpridos em várias dimensões, a entidade liderada por José Tavares pede que se crie uma “estrutura integrada de acompanhamento”, uma de várias recomendações ao Governo.
No relatório divulgado esta quinta-feira sobre o ‘processo de transferência de competências para os municípios’, o TdC reconhece o impacto negativo que a pandemia teve no processo de transferência de competências para as autarquias, mas aponta “outras dificuldades [que] resultaram de insuficiências na fundamentação e planeamento, bem como da não diferenciação em função da dimensão e complexidade dos domínios objeto de descentralização de competências”.
Em particular, a “informação disponibilizada é inconsistente com a evolução conhecida do processo de transferência de competências”, resultado tanto de diferenças de valores, como da ausência de um registo contabilístico uniforme, como ainda do não reporte à Direção-Geral das Autarquias Locais (DGAL) pelas autarquias.
Como tal, o acompanhamento do processo “tem revelado muitas dificuldades”, incluindo relativamente às necessidades financeiras das autarquias. Isto leva o TdC a “constatar que não se encontram consolidados mecanismos estáveis e transparentes de financiamento das competências a descentralizar”, algo espelhado pela necessidade de suprir alegadas insuficiências no financiamento.
Assim, o relatório sugere que sejam clarificadas “as fórmulas de cálculo dos montantes de financiamento atribuídos por conta do exercício das competências transferidas”, de forma a garantir a estabilidade do financiamento, além de pedir uma “estrutura integrada de acompanhamento, monitorização e avaliação, capacitada para municiar o apoio à decisão”.
Governo garante processo fechado
Recorde-se que os avisos do TdC quanto ao processo de descentralização não são novos, que ainda na avaliação à Conta Geral do Estado do ano passado criticou o reporte incompleto e desadequado quanto à passagem de competências para os municípios.
Ainda assim, o Governo frisou repetidas vezes a vontade de concluir o processo, uma visão novamente invocada por António Costa esta quarta-feira. O primeiro-ministro demissionário garantiu novamente que irá deixar esta pasta fechada, mostrando-se confiante que tal será alcançado, até porque “já só faltam seis municípios”.
“Hei de irritar todos até ao final. Não cessarei funções sem termos cumprido a meta prevista no PRR para que a verba se cumpra no âmbito da descentralização na saúde”, afirmou, reforçando o compromisso com uma meta já atrasada em um ano. No ano passado, a Comissão Europeia já bloqueou o envio de 700 milhões de euros do envelope comunitário a propósito dos atrasos na descentralização de competências nesta área.
O processo vinha já de trás, com a passagem de competências para as autarquias, uma promessa eleitoral do PS e António Costa em 2018. Naquele ano, o Governo publicou a lei-quadro de transferências em 20 áreas que deveria servir de base a diplomas sectoriais a desenvolver posteriormente.
Este processo destina-se às 278 Câmaras do continente, já que os municípios dos Açores e da Madeira negoceiam com os respetivos Governos Regionais. O Governo assumiu que a descentralização seria o primeiro passo para, finalmente, existir um processo de regionalização, prevista na Constituição desde 1976 e que remeteu para depois de 2024.
Em setembro do ano passado, o primeiro-ministro falava numa "negociação que nos levou a bom porto", mas admitindo que o processo "nunca estará acabado". À altura, António Costa lembrava que "100% dos municípios já assumiram as competências na área da ação social e da educação" e 85% dos 201 municípios em negociações com o Governo a propósito da área da saúde também já haviam assumido aquela pasta.
A ideia é servir como primeiro passo para uma regionalização, uma estratégia que tem vindo a ganhar força no país após décadas de debates sem grandes avanços. A transferência de competências assenta nos princípios de maior eficiência, permitindo um acompanhamento mais próximo pelas autarquias às populações sem aumentar a despesa do Estado, garante o Governo.
TdC pede cumprimento de prazos e delimitação de responsabilidades
Apesar de reconhecer o impacto da pandemia nos atrasos na descentralização, o TdC deixa algumas recomendações ao Governo, incluindo um pedido para que os novos prazos sejam cumpridos.
Além das mudanças no calendário e mapeamento dos investimentos, o organismo reforça o apelo para a introdução de “mecanismos de reforço da coesão territorial e da igualdade de acesso e qualidade dos serviços prestados”. Dado o perigo de sub ou sobre financiamento e de sobreposições, há também uma preocupação expressa com a “estabilidade” das verbas, lê-se no relatório, sugerindo “delimitar as responsabilidades nas situações em que se mantém a gestão partilhada”.
Dado o reporte inadequado, os municípios devem ainda procurar “orientar e uniformizar” o mesmo, “nomeadamente financeiros, relativos à assunção de competências e ao seu exercício nos diferentes domínios”. Por fim, o TdC recomenda ao Governo que publique “informação atualizada, consistente e completa, por município e domínio, das competências efetivamente transferidas e do financiamento que lhe está associado”.