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Suspensão (quase) automática: o PRR e a arte de fingir que se protege

O Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) – por transposição da Diretiva 2007/66/CE (a denominada Diretiva Recursos) – estabelece que as ações de impugnação de decisões de adjudicação em processos de contencioso pré-contratual, se apresentadas nos dez dias úteis seguintes à respetiva notificação, têm efeito suspensivo automático. Naturalmente, este regime tem sido frequentemente invocado por concorrentes preteridos, atrasando em certa medida a celebração e execução dos contratos. Ainda assim, o próprio CPTA permite que a entidade adjudicante requeira o levantamento da suspensão, mediante decisão judicial, por aplicação do critério da ponderação dos interesses (público e privado) em presença.

O legislador, porém, entendeu que este regime geral não era suficiente para determinadas situações. Por isso, criou um mecanismo especial: o artigo 25.º-A da Lei n.º 30/2021, aditado pela Lei n.º 43/2024, de 2 de dezembro, no contexto da execução de projetos financiados por fundos europeus — em particular no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). O objetivo era compreensível: evitar a perda de fundos comunitários por via de litigância excessiva nos tribunais administrativos e da demora desses processos.
Contudo, a verdade é que a solução encontrada levanta sérias dúvidas quanto ao equilíbrio entre celeridade e proteção dos direitos dos concorrentes. O artigo 25.º-A institui um regime excecional aplicável, como se disse, às impugnações de adjudicações em contratos públicos financiados por fundos europeus.
No termos da referida norma, nestes casos específicos, a entidade adjudicante pode requerer ao tribunal o levantamento provisório da suspensão, bastando apresentar documentação sumária que comprove o risco de perda de financiamento. Esse risco, no entanto, presume-se automaticamente sempre que o contrato esteja ligado a fundos europeus — ou seja, praticamente em todos os casos abrangidos por este artigo.
Com o levantamento do efeito suspensivo (mesmo que provisório), segue-se uma sequência de notificações, requerimentos para manutenção da suspensão, contra-alegações, pedidos de ampliação de fundamentos e novas respostas. Os prazos são curtos, mas, somados às habituais demoras judiciais, permitem à entidade adjudicante celebrar e até iniciar a execução do contrato. O resultado é que a suspensão automática — que deveria salvaguardar os direitos dos concorrentes e garantir a reversibilidade do processo, nos temos consagrados na Diretiva Recursos — torna-se praticamente inócua nestes casos. O artigo 103.º-A do CPTA, que consagra uma suspensão efetiva, surge assim completamente esvaziado de conteúdo.
Compreende-se, naturalmente, a urgência na execução dos fundos do PRR e o risco de perda de verbas cruciais para a recuperação económica do país. Mas o remédio legislativo é, a nosso ver, desproporcional. Ao permitir, na prática, que a entidade adjudicante avance com a execução do contrato apesar de haver impugnação, compromete-se o direito dos concorrentes a uma tutela
jurisdicional efetiva. O equilíbrio entre o interesse público na celeridade e o direito de defesa dos particulares diretamente afetados por uma adjudicação surge claramente comprometido.
Sendo um regime transitório, limitado à vigência dos fundos extraordinários europeus, é provável que não venha a gerar jurisprudência significativa. Quando os tribunais superiores se pronunciarem, o regime poderá já ter caducado. Ou seja, uma lei pouco equilibrada e talvez nunca verdadeiramente escrutinada, em mais um episódio de legislação de emergência que deixa um rasto de lamentos e frustrações.
O artigo 25.º-A da Lei n.º 30/2021 é, pois, um exemplo claro de como a pressa e a pressão europeia em matéria de fundos podem conduzir a soluções legislativas que, em vez de resolverem, complicam e sacrificam direitos fundamentais. O objetivo era legítimo. Mas não pode justificar a criação de um regime que torna ineficaz o direito que emerge da Diretiva Recursos em matéria de contratação pública. O Estado de Direito exige equilíbrio, ponderação e respeito pelos direitos de todos — mesmo em tempos de emergência. Infelizmente, não foi isso que aconteceu aqui.