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Pesadelo em ar condicionado

"Foi uma maravilhosa viagem de carro de Nova Orleães para cá, passando por vilas e aldeias com estranhos nomes franceses, como Paradis e Des Allemands, seguindo primeiro a perigosa estrada ziguezagueante que corre ao lado do dique, depois o sinuoso Bayou Black e finalmente o Bayou Tech."

"Foi uma maravilhosa viagem de carro de Nova Orleães para cá, passando por vilas e aldeias com estranhos nomes franceses, como Paradis e Des Allemands, seguindo primeiro a perigosa estrada ziguezagueante que corre ao lado do dique, depois o sinuoso Bayou Black e finalmente o Bayou Tech.

(...) Janeiro na Louisiana! Os primeiros sinais da Primavera manifestam-se já nos pequenos quintais das cabanas: os narcisos de uma brancura de papel e as íris alemãs cujos cachos verde-acinzentados são encimados por uma espécie de desdenhosa pluma branca.”

É um cliché falar da relação de amor-ódio que tantas pessoas terão com os Estados Unidos da América. Entre elas, muitas serão nativas do país. Quando a relação pende mais para os sentimentos negativos, há quem opte por procurar outros horizontes. Foi o caso de Henry Miller (1891-1980), autor de “Trópico de Câncer” ou da trilogia de “Sexus”, “Nexus”, “Plexus”, cuja obra denota uma reflexão metafísica com um erotismo explícito.

Desprezando profundamente o ‘american way of life’ e tudo o que este representa (da moralidade à alienação), Miller, após dez anos de desterro na Europa, regressa aos Estados Unidos para embarcar numa viagem de redescoberta das raízes e da alma do seu país.

“Pesadelo em Ar Condicionado”, publicado originalmente em 1945, é o relato dessa odisseia – que durou três anos –, à luz dessa forma de ver a vida e o mundo preconizada pelo autor e que visava encontrar um sentido mais profundo para a vida; portanto, a milhas de distância dos pressupostos do capitalismo e da sua sede de riqueza. Viu uma nação de grandes empresas e homens pequenos, órgãos de comunicação simultaneamente soníferos e violentos, de indústrias gigantes poluindo o ambiente, de compras a crédito, carros baratos e aparelhos para tudo e mais alguma coisa; em suma, um profundo vazio estético e espiritual.

Mas, Miller apaixona-se pelo seu carro e chora perante o Grand Canyon. As suas histórias celebram homens e mulheres com quem se cruza, cuja resistência criativa ou mera existência se opõem à desumanização, à mecanização de mentes e almas. A fazer-nos recordar o filme que valeu a Frances McDormand o Óscar de Melhor Actriz, “Nomadland – Sobreviver na América” (agora publicado em Português).
Da janela aberta do seu automóvel, Henry Miller faz o implacável retrato de um país que ainda hoje reconhecemos: um país de grandes esperanças, promessas traídas e insanáveis contradições. Tal como no cliché.

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