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“O país passa a ter um plano de migrações, o que não acontecia desde 2014”, destaca especialista

Inês Azevedo, advogada, não tem dúvidas sobre os benefícios da proposta do Governo. Do lado do Serviço Jesuíta aos Refugiados, André Costa Jorge saúda o claro distanciamento do Governo às narrativas populistas que associam migração e insegurança.

“Um dos mais importantes pontos positivos do novo Plano para as Migrações” – apresentado pelo Governo esta segunda-feira – “é que o país passa a ter um plano, o que não acontecia desde 2014”, salvo medidas “reativas que eram difíceis de perceber”, disse a advogada Inês Azevedo, especialista na área de migrações, ao Jornal Económico (JE).

Para aquela especialista, “as 41 medidas do plano estão genericamente divididas em três grandes grupos: segurança das fronteiras, integração e políticas públicas”. E, na sua opinião, a proposta do Governo responde de forma positiva a todas elas. Não de uma forma ideal, “mas de uma forma positiva”. Até porque, diz, o plano permite perceber que o Governo tem um rumo definido – o que retira casualidade e mesmo discricionariedade ao sistema, dois fatores que baralham o lado que recebe e que transmitem forte insegurança ao lado que procura.

Para Inês Azevedo, o Governo voltou à fórmula ‘economicista’ do “match entre a oferta e a procura”. Não há neste discurso uma tentação de usar os imigrantes – “que todos sabemos serem muito importantes para o país” – numa ótica de ‘commoditie’. É simplesmente encontrar uma fórmula eficaz para receber, acomodar e tornar feliz quem nos procura, seja por que razão for. “Há uma visão fundamentada em dados estatísticos”, fundamental num contexto em que Portugal “recebeu nos últimos anos mais de 300 mil imigrantes”. “Há uma intensão de mapear as necessidades laborais” – quer em termos de mão-de-obra não-qualificada, quer o seu contrário, fator que muitas vezes é negligenciado.

Segundo a sócia do escritório de advogados Azevedo e Ascenso, vale a pena isolar como positivo o facto de o Governo querer criar uma unidade de estrangeiros no quadro da PSP. “Quando o SEF foi extinto, repartiu-se por seis entidades diferentes” – de onde resultou que aquilo que o organismo cumpria em termos de segurança das fronteiras ficou vazio. “Estava a ser incomportável garantir a segurança das fronteiras” – e a criação da nova unidade “permitirá centralizar bases de dados e tudo o que tem a ver com o assunto”.

Para a especialista, vale também a pena destacar “a restituição do Observatório das Migrações ao seu papel fundamental enquanto organismo para a promoção das políticas públicas [nesta área]. É imperativo. Não é só Portugal que está nesta crise, é a Europa toda e é por isso que é tão importante termos um organismo focado e especializado”.

Menos bem andou o Governo, na sua opinião, na questão da criação da estrutura de missão – uma espécie de task force criada para encontrar uma solução para os mais de 400 mil pedidos de imigrantes, parqueados numa ‘gaveta’ da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) a que ninguém parece ter acesso. “Não está bem explicado como é que a estrutura de missão vai resolver o problema. Era importante saber qual é o prazo em que o organismo se propõe resolver estes 400 mil pendentes. Sugeria que houvesse uma descentralização e se utilizassem os centros locais de apoio a nível municipal e a nível das freguesias para conseguirem processar e receber estes processos. E falta explicar como é que vai ser possível aceder à AIMA, que atualmente se faz através de um telefone que ninguém atende e de plataformas informáticas que não funcionam”.

Mesmo assim, Inês Azevedo não tem dúvidas de que o Plano de Ação para as Migrações, que o ministro da Presidência, Leitão Amaro, apresentou com a demora a que vai habituando as plateias, é positivo e um passo no caminho certo.

Do lado do JRS Portugal – Serviço Jesuíta aos Refugiados, André Costa Jorge, sublinha que o documento espelha “uma visão que procurou ouvir as vozes de quem trabalha no contexto, na realidade”.

Nas palavras do mesmo responsável, o plano é “abrangente e transversal a várias dimensões das migrações em Portugal”, dando destaque à questão da detenção de migrantes, “um tema que teve na origem a gota de água deste processo de extinção do SEF”.

Segundo André Costa Jorge, o plano “deve ir mais longe” nesta matéria, incluindo “medidas alternativas à detenção”. “Não basta que o plano inclua dimensões como a melhoria ou o aumento de capacidade dos espaços de detenção, mas que vá também pelas medidas alternativas à detenção”, continuou.

No entender do diretor da JRS Portugal, a detenção administrativa enquanto medida utilizada pelos Estados para tratar do afastamento ou análise dos processos dos imigrantes “é demasiado pesada e gravosa, tendo impacto na vida das pessoas”.

“A lei diz que a detenção é a ultima ratio [derradeiro recurso], e não a primeira”. “As pessoas não cometeram crimes, as pessoas não estão indocumentadas ou são irregulares. Os Estados devem encontrar medidas de acompanhamento das pessoas, colocando-as, de alguma forma, sob a sua tutela e proteção, não numa situação de privação de liberdade”, explicou.

Aludindo a experiências de alternativas à detenção que “o JRS conhece na Europa”, como Bélgica e na Roménia a organização “insta governos a explorarem medidas alternativas à detenção”.

André Costa Jorge saudou a forma como a matéria foi apresentada pelo Executivo liderado por Luís Montenegro, num claro distanciamento de narrativas populistas. “O Governo, ao nível do discurso sobre as migrações, distanciou-se claramente do discurso populista e alarmista que pretende associar as migrações à insegurança e à criminalidade”.

“Foi muito positivo que o Governo declarasse que Portugal precisa de migrantes”, acrescentou, defendendo uma maior regulação.

“Portugal precisa que as pessoas migrantes não sejam vítimas de injustiças, mas protegidas de situações de injustiça estrutural, que levam muitas vezes a que as redes de tráfico ou situações abusivas se abatam sobre eles, tornando os migrantes mais vulneráveis do que a situação migratória propriamente em si normalmente conduz os migrantes”, continuou.

Quanto à eliminação do processo de manifestação de interesse, André Costa Jorge lista essa medida entre as matérias que “têm de ser trabalhadas”. “De uma forma geral, as medidas são bem intencionadas, e são coerentes com o objetivo do Pacto das Migrações, que privilegia migrações ordenadas, migrações reguladas.

O fim desta medida, “criada para remendar a falta de eficácia do sistema”, pode, segundo o diretor do JRS Portugal, promover “situações de irregularidade e de proteção social”.

“Os postos consulares não estão preparados, da nossa experiência, para dar resposta aos pedidos de visto. Há aqui um problema no plano do Governo que tem de ser trabalhado do ponto de vista da capacidade que o Estado tem de dar resposta nos vários sectores, Ministérios, às dimensões que os imigrantes precisam”, explicou, em declarações ao JE.

“Temos receio, por um lado, que as pessoas ou não consigam migrar legalmente, e nós sabemos que quando as pessoas não conseguem legalmente, fazem-no recorrendo a vias ilegais e inseguras. É preciso ter a coragem política também de avaliar as medidas concretas, não cometendo erros e não externalizando as dificuldades”, continuou.

Sobre a capacidade operacional do Estado no processamento da documentação, André Costa Jorge diz que o “serviço público não dá a resposta, por incapacidade estrutural do Estado”.

“Desde 2009, os relatórios do SEF falavam da necessidade de haver um investimento em reforço dos recursos humanos. Em 2019, o SEF falava em rutura do sistema em 2019. De 2009 até hoje, vários governos foram alertados pelos serviços da incapacidade e da dificuldade de resposta, quer de recursos humanos, quer de meios tecnológicos”, recordou.

Acabar com o passado

Recorde-se que o Governo apresentou as 41 medidas que formam o plano onde avulta o fim do regime excecional que permitia a um estrangeiro entrar em Portugal e só depois pedir autorização de residência. O sistema, criado pelo anterior governo em outubro de 2022 era considerado pelo executivo de Luís Montenegro como o principal causador da desorganização em que caiu o acolhimento de imigrantes em Portugal. Aliás, o sistema deixou de funcionar poucas horas depois do anúncio do plano de substituição. Luís Montenegro disse-o: “esse sistema acaba hoje” – e, no caso. “hoje” queria mesmo dizer naquele dia.

O plano inclui a criação de uma “estrutura de missão, com recursos humanos, materiais e financeiros adicionais, viabilizados por medidas extraordinárias de contratação, que integre funcionários da AIMA, inspetores do ex-SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) e outros profissionais a recrutar”. À nova estrutura caberá a responsabilidade pela “apreciação expedita dos pedidos” e um reforço do atendimento presencial para resolver as pendências existentes. Como enfatizou o primeiro-ministro na apresentação do documento – depois detalhado pelo ministro da Presidência, António Leitão Amaro – “não ter resposta é muitas vezes pior que ter um ‘não’ como resposta”.

Neste contexto, o plano prevê a “intervenção urgente nas infraestruturas, sistemas informáticos e bases de dados do controlo de fronteiras existentes”, a recuperação do atraso na implementação dos novos sistemas de controlo de fronteiras (‘smart borders’) e um “sistema de atração de capital humano”, que inclui a colaboração com “confederações e associações empresariais” para trazer trabalhadores necessários para o tecido económico português, embora sem nunca referir qualquer política de quotas.

A AIMA passará a ter responsabilidade pelo atendimento presencial dos pedidos de renovação de autorização de residência, atualmente no Instituto dos Registos e do Notariado (IRN), concentrando na instituição “o tratamento e decisão de todos os pedidos de documentação de cidadãos estrangeiros”. Em paralelo, o Governo promete “reforçar a capacidade operacional da AIMA, nomeadamente dos recursos humanos e tecnológicos”, procurando criar “um inventivo à produtividade e desempenho” dos funcionários, classificar o Observatório das Migrações como organismo do Estado para apoio à política pública, “em articulação com o Conselho para as Migrações e Asilo”, que se irá autonomizar.

O plano prevê um reforço orçamental de 15 milhões para o sector. No total, o plano vai custar cerca de 80 milhões de euros, que incluem o acréscimo orçamental, verbas de fundos comunitários relacionados com o Pacto para as Migrações europeu e projetos de segurança fronteiriça, mas também receitas próprias da AIMA.