Skip to main content

"Liberté, Égalité, Mbappé". Resolvido o problema da extrema-direita surgem vários problemas à esquerda

Os mercados reagiram com pouco entusiasmo ao resultado das eleições francesas. O aumento dos gastos preocupa os investidores, num país que já ultrapassou os 110% de dívida sobre o PIB. Outras preocupações passam pelo abandono de medidas para reduzir défice orçamental (num país que está sob vigilância de Bruxelas) e pela marcha-atrás de legislação aprovada pelo anterior executivo. Nova Frente Popular já prometeu aumentar salário mínimo e melhorar apoios sociais, que seriam suportados por impostos sobre lucros e sobre ativos financeiros.

"Liberté, Égalité, Mbappé". O mote de França, com origem na revolução francesa, foi adaptado recentemente depois de Kylian Mbappé, avançado da seleção gaulesa, ter apelado ao voto contra o partido de Marine Le Pen (a par de outros jogadores dos 'les bleus') durante o Euro 2024.

Mas se a extrema-direita foi derrotada, resta agora saber o que vai fazer a frente de esquerda. Se os mercados temiam o excesso de gastos pelo Rassemblement National, de Marine Le Pen e Jordan Bardella, agora os receios são de que a frente de esquerda oponha-se às reformas do presidente Emmanuel Macron, vistas como pró-mercados, e que trave medidas para controlar a, fora de controlo, dívida francesa. O roteiro a seguir é agora pouco claro e vai aumentar o risco e volatilidade sobre a República Francesa.
 
Os mercados reagiram de forma amena. As yields francesas estavam a descer ligeiramente na tarde de segunda-feira para 3,120%, com o spread entre a dívida francesa e a dívida alemã a recuar 17 pontos base para 65 pontos.

A bolsa de Paris fechou a recuar 0,63%, com o BNP Paribas e o Credit Agricole em terreno negativo.

Já o euro face ao dólar estava a recuar ligeiramente para 1,0833 dólares ao final da tarde de segunda-feira, enquanto face à libra estava a subir ligeiramente para 0,8448 libras.

A Nova Frente Popular obteve 182 assentos, com a centrista Ensemble Alliance de Emmanuel Macron a garantir 163 e o Rassemblement National, de extrema-direita, a assegurar 143 assentos. Outros partidos à direita obtiveram 68 assentos e à esquerda os restantes 11 assentos.

Antes da segunda ronda, a banca francesa foi atingida em força pelo sell off na bolsa de Paris, devido a preocupações quanto aos efeitos do aumento dos custos de financiamento sobre a dívida francesa, que detêm em grande número nas suas carteiras, e por receios relacionados com os impostos sobre lucros extraordinários.

A dívida francesa sobre o PIB atingia os 111% no final de 2023, com o défice orçamental a atingir os 5,5%.

Uma das primeiras medidas que pode agora cair é a promessa do anterior governo de cortar o défice orçamental de 5,5% para 3% até 2027.

A Nova Frente Popular já prometeu aumentar os gastos, incluindo um aumento substancial do salário mínimo e o congelamento dos preços para muitos bens essenciais.

Para Frederic Leroux da Carmignac, o cenário de impasse vai impedir "qualquer alteração legislativa importante. França vai gerir os seus assuntos correntes até à próxima dissolução ou até à demissão do Presidente da República, num contexto de contínua deterioração das contas públicas", afirmou, citado pelo jornal "Les Echos".

Já a agência S&P Global alertou que o seu rating atual "estaria sobre pressão, se o crescimento económico for materialmente menor do que as nossas previsões por um longo período de tempo [...], ou se França não conseguir reduzir o seu grande défice orçamental e se os pagamentos de juros públicos, em percentagem das receitas públicas, aumentarem para além das nossas expetativas anuais".

"A chamada 'Frente Republicana', onde os partidos que cooperaram para bloquear a ascensão da extrema-direita ao poder tiveram sucesso, mas deixaram o Parlamento dividido. Estamos agora a olhar para um longo período de paralisia", escreveram os analistas do Rabobank, citados pela "CNN".

O resultado "ameaça exacerbar os problemas orçamentais de França. O forte apoio obtido pela esquerda unida torna mais difícil à esquerda moderada separar-se da extrema-esquerda e deitar fora as partes mais caras" do plano da Nova Frente Popular, disse Holger Schmieding do banco Berenberg, considerando o plano "incomportável" financeiramente.

No plano da Nova Frente Popular, também estão previstos aumentos de 10% para os funcionários públicos, almoços grátis nas escolas, a par de aumentos de 10% nos apoios à habitação.

Como pagar este aumento de despesa? Um imposto sobre os lucros, ainda sem detalhes, num total de 15 mil milhões de euros, e um outro imposto sobre os ativos financeiros, esperando angariar outros 15 mil milhões.

Outras medidas incluem o congelamento de bens alimentares básicos e da energia, o aumento do salário mínimo em 14%, com subsídios para as pequenas empresas que não conseguem comportar as subidas.

A NFP também pretende eliminar o aumento da idade de reforma, aprovada pelo Governo Macron em 2023, e até pondera reduzi-la para 60 anos.

O NFP é constituído pelo Partido Socialista, os Verdes, o Partido Comunista e o La France Insoumise de Jean-Luc Mélenchon. Este bloco de esquerda não tem um líder e os seus partidos estão divididos sobre quem escolher como primeiro-ministro.

"O programa económico da esquerda é, de muitas formas, muito mais problemático do que o da direita, e apesar da esquerda não ser capaz de governar sozinha, o cenário para as finanças públicas francesas deteriora-se com estes resultados", disse Jan von Gerich da Nordea, citado pela "Reuters".

O primeiro-ministro Gabriel Attal já disse que iria apresentar a sua demissão, mas Emmanuel Macron quer mantê-lo no cargo para "assegurar a estabilidade do país". França realiza eleições presidenciais em 2027.

Olhando para o cenário incerto, o UBS aponta que, se o parlamento "conseguir rapidamente formar um governo tecnocrata capaz de apresentar orçamentos 2024-2025 que cumpram as regras orçamentais europeias", o spread entre a dívida gaulesa e alemã deverá recuar para 60 pontos base. Se houver um governo não-tecnocrático, este poderá demorar mais tempo a ser formado, aumentando o spread para 70 pontos base, segundo Reinout De Bock.

O jornal "Le Monde" não tinha dúvidas esta segunda-feira: "Sem uma maioria absoluta, a Assemblée Nationale corre o risco de ficar paralisada".

O que se segue? Emmanuel Macron deverá agora apresentar um candidato com o objetivo de obter o apoio de uma maioria na Assembleia Nacional, ou que, pelo menos, não corra o risco de ser rejeitado.

Se houvesse uma maioria absoluta, seria reeditada a versão de coabitação entre partidos diferentes na presidência e na Assembleia, como aconteceu com François Miterrand e Jacques Chirac. Mas perante o resultado, nada feito.

À esquerda, a NFP rejeita, à partida, uma aliança com o bloco de Macron ou com a direita. Ao centro, o partido de Macron disse que existem pré-condições para começar a negociar com a esquerda, mas existem muitos anticorpos face à La France Insoumise de extrema-esquerda, liderada por Melenchon (que obteve a maioria dos assentos entre este bloco, 74 no total, seguido dos socialistas com 59, os Verdes com 28 e os comunistas com nove).

O "Le Monde" aponta também que um governo pode ser nomeado sem ter o apoio de uma maioria na Assemblée, como aconteceu com Elisabeth Borne e Gabriel Attal entre 2022-2024, tendo contado com apenas 43% dos votos. Durante este período, os governos pró-Macron aprovaram legislação medida-a-medida, sem ter a oposição unida contra si e usando uma regra que permite a aprovação de leis sem irem a votos, tendo sobrevivido a moções de censura.

Fora do cenário está a possibilidade de realizar novas eleições em breve. A Constituição só permite a partir do verão de 2025.

Neste cenário, a NFP poderia governar, mas precisaria do apoio tácito de outros 94 deputados. Também o bloco presidencial pode governar em teoria, mas precisaria de convencer outros 121 deputados a deixarem-no governar.

Um governo sem maioria absoluta corre o risco permanente de cair, devido aos votos de censura.

Outra hipótese seria nomear um governo tecnocrático, nomeando independentes que reúnam a confiança de um número alargado de deputados, tal como já aconteceu em Itália.