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"Está em curso uma revolução de e-government" para obter mais e mais dados em tempo real das empresas

A "fome de dados" dos governos está a levar a mais e mais regulamentação, que vão obrigar as empresas a cederem mais informação em tempo real às administrações centrais. E essa tendência do e-business para 2024 levanta questões sobre privacidade e confidencialidade, diz Christiaan van der Waalk.

Christiaan Van Der Valk é vice-presidente para a estratégia da SOVOS, multinacional de software de compliance fiscal que opera em pelo menos 14 países. Em entrevista ao Jornal Económico, o especialista em e-business diz que está em curso uma revolução de e-government, alimentado pela “fome de dados” das administrações centrais dos vários países. Se por um lado os dados mais precisos podem ajudar a calibrar a economia quando esta precisa, o tema também levanta questões sérias de privacidade e confidencialidade.

Como especialista nesta área, Christiaan, qual é a principal tendência para o e-business em 2024 e nos anos seguintes?
Estou neste negócio há muito tempo, e-business, mas não sou especialista em comércio eletrónico (e-commerce), no sentido de transações de consumidores e tudo o que está relacionado com isso. Estou sobretudo na área de B2B (empresa para empresa), mas diria que – em termos gerais – a tendência mais notável agora é que o nível de regulamentação está a aumentar muito rapidamente. Eu quero dizer, a maneira como eu penso sobre isso é: até há cerca de cinco anos, dez anos atrás – dependendo de onde você está, porque na América Latina é um pouco diferente – as empresas tinham sido capazes de usar a internet e a automação, automação no escritório, automatização das transações mais ou menos livremente. Durante umas duas décadas foi assim.

Ou seja, desde os anos 1990, por aí.
Sim, desde o início dos anos 90, com a troca eletrónica de dados e tudo mais, por exemplo. As empresas não foram realmente muito incomodadas pela legislação na adoção de ferramentas digitais.

E não deveriam ter sido mais regulamentadas?
Acho que isso é uma questão de gosto, suponho. Acho que o que nós estamos a ver é um par de coisas. Se você pensar sobre isso como um político de alto nível, a primeira coisa que pensa é – e, é claro, em Portugal já há bastante experiência com isso – a primeira coisa que pensa é que há oportunidades para os governos cobrarem impostos de uma forma mais inteligente. E isso exige mais mais legislação. Como você sabe, algumas das mais antigas provas de escrita de toda a Humanidade estão relacionadas com impostos e contabilidade.

As tábuas sumérias.
Exatamente. Não é uma coincidência que os impostos sejam hoje grandes dinamizadores desta mudança rumo a mais legislação, mais regulação de transações comerciais ou transações comerciais eletrónicas. E parte disso deve-se a esta revolução que ocorreu na América Latina, há apenas cerca de 20 anos, onde alguém no Chile pensou: 'Hey, por que é que ainda estamos a receber relatórios periódicos com dados agregados para transações de negócios, para imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e outros tipos de impostos, quando, simplesmente, podemos obter as informações em tempo real. As pessoas já têm os sistemas de informação, os dados, na maioria dos casos, já são criados em ambiente digital. Porque diabo é que não temos só esses dados? E isso iniciou esta revolução em direção ao que agora chamamos 'Controlos contínuos sobre as transações', faturação eletrónica obrigatória.

Mas isso já ultrapassou as fronteiras do Chile.
Há todo um movimento, pelo mundo – inclusive agora na Europa, onde finalmente as administrações fiscais também acordaram para o facto de que, ao criarem mais legislação, podem obter dados em tempo real. Então essa é a primeira grande tendência. A outra é um pouco relacionada com a primeira. O que eu acho que aconteceu foi – e esta é outra razão pela qual estamos a ver mais legislação: quando a administração tributária começou a obter mais dados digitais, outros departamentos do governo começaram a ficar com ciúmes, ou isso despertou-lhes o interesse. Então, eu acho que está a acontecer uma revolução de e-government no sentido em que pessoas cujo trabalho, por exemplo, é tentar fazer cumprir leis ambientais ou qualquer lei anti-lavagem de dinheiro ou seja o que for... quase todas as áreas do governo podem beneficiar de dados em tempo real da economia.

Se podemos ter acesso, por que não aproveita-lo em tempo real?
Exatamente.

Apesar do que isso representa para o direito à privacidade...
Exatamente. E sim, esse é um ponto muito bom, porque eu acho que essa fome por dados está a girar e a girar e estamos a perder o controlo. No sentido de que os governos podem ver todas as coisas. Geralmente, as coisas que podem fazer com a informação são boas – pela saúde pública, para o meio ambiente, muitas outras coisas. Existem alguns exemplos realmente muito bons, particularmente na América Latina, de que essa fome por dados foi uma espécie de abertura da Caixa de Pandora, onde vemos cada vez mais e mais regulamentação porque os governos querem mais e melhores dados. E uma das coisas que eu acho que acelerou isso foi a pandemia.

Como assim?
Há dados muito interessantes de como a Administração Tributária Brasileira emitiu relatórios de comércio muito detalhados, todas as semanas, a dar conta do impacto preciso, granular sobre cada produto, sobre cada serviço, sobre tudo o que acontecia na economia, quase em tempo real. E mediam assim o impacto económico. Portanto, e naturalmente, eles tinham um instrumento muito, muito refinado para direcionar subsídios aos sectores da economia que mais sofreram durante a pandemia. E isso deveu-se a essas ferramentas digitais, a estes dados.

E na Europa?
Eu sei que em Portugal os dados também estavam disponíveis, certo? Mas na maioria dos países da Europa... Veja o exemplo de um país como a Alemanha, que é suposto ser um país bastante avançado no que toca a tecnologia – eles não tinham quaisquer dados. Nenhuns. Então eu acho que a pandemia criou isso: uma espécie de justificação esmagadora para obter mais dados. E, é claro, em termos gerais, a necessidade de mais regulamentação, a maior resiliência e a maior autonomia regional também estão a alimentar isso. Portanto a Comissão Europeia está a sentir-se muito encorajada, com uma justificação adicional, para apresentar uma proposta legislativa bastante revolucionária para obter mais dados.

Em Portugal a máquina fiscal tem sido remodelada, melhorada e aumentada substancialmente nos últimos anos.
É um bom ponto. Anteriormente você levantou questões de privacidade e confidencialidade e, claro, esse vai ser o grande debate que se segue, como é que se consegue alcançar esse equilíbrio: os governos querem mais dados e dados de melhor qualidade. Então começam a espalhar a regulamentação por muitas áreas diferentes. Por exemplo, agora há muita regulamentação sobre as redes, sobre como as empresas trocam dados umas com as outras. Porquê? Porque a maioria das redes electrónicas são proprietárias, ou seja, as grandes empresas têm sido proprietárias das suas próprias redes há muito tempo, o que significa que as PME, devido a isso, não foram realmente capazes de se automatizar. As PME estavam apenas a inserir dados em diferentes portais, com uma grande empresa por detrás. Então os governos agora estão a começar a ver que, se obrigarem as empresas a conectar essas redes proprietárias, com mais padronização, e se as pequenas empresas começarem a automatizar-se mais também, e isso vai originar melhores dados acerca da economia.