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Como reinventar a sala de cinema

À boleia de um aniversário, os 50 anos do Cinema Nimas, em Lisboa, e do “prazer enorme” que é programar uma sala de cinema, o produtor Paulo Branco discorre sobre o vício da cinefilia num grande ecrã.

Não falámos sobre paraísos, artificiais ou outros, nem sobre potenciais infernos. Até porque o nosso interlocutor não se revê nessa dualidade de caminhos. Manoel de Oliveira surgiu cedo na conversa. Ele que dizia preferir “o paraíso pelo clima e o inferno pelas companhias”. Mas antes de estendermos o tapete da cinefilia, vamos tentar traçar o retrato de alguém que é, talvez, mais conhecido como produtor, faceta a que soma a de distribuidor/exibidor e o gozo cinéfilo que é programar uma sala.
Paulo Branco nasceu em 1950. Passou a infância em Alcochete, numa altura em que os cavalos ainda eram um meio de transporte importante. Em tempos referiu que teve muita sorte por ter vivido numa quinta. Começou a montar com seis anos de idade e a competir com 17, 18 anos. Para Branco, foi como viver num western. Logo aqui, temos duas paixões que o acompanham ao longo da vida: cavalos e John Ford. Por outras palavras, o western como janela ampla e aberta ao cinema. “Eu era estudante do Técnico e não pensava em trabalhar em cinema, quando, a certa altura, conheci o [realizador] António-Pedro Vasconcelos e assisti a alguns dias de rodagem do [seu filme] “Perdido por Cem».” Por piada, diz, acompanhou-o em muitas das coisas que “ele fazia num cineclube no Cinema Londres, um espaço que a Castello Lopes lhe tinha dado. E lembro-me perfeitamente, por exemplo, de um ciclo sobre filmes malditos. Foi aí que eu descobri alguns filmes, como «A Palavra» [Ordet, no original, de Dreyer] e outros que me marcaram.”
Portugal sufocava e Paulo Branco queria mundo, horizontes. Deixou o curso de Engenharia Química no Técnico e foi para Londres lavar pratos em restaurantes. Mas isso não interessa, diz ao JE. “O que interessa é que comecei a ver muitos filmes nas salas independentes. Ia muito ao National Film Theater, ao BFI, ao Institute of Contemporary Arts... Depois, já no final da minha estadia em Londres, tive a sorte de ganhar umas apostas dos cavalos e resolvi alugar uma sala de cinema em Fulham Road, o Paris Pullman, e aos fins de semana organizei o meu próprio cineclube, um bocado na imitação do que tinha visto ser feito pelo António-Pedro.”
Ficou o ‘bichinho’, que levou consigo quando atravessou o Canal da Mancha e se instalou em Paris, onde, em 1974, recorda, começou a trabalhar com Frédéric Mitterrand em salas de cinema. “Osobrinho do dito cujo”, frisou, não fosse o apelido passar despercebido. Posteriormente, em 77, “depois de grandes aventuras que não vêm ao caso”, começou a programar um cinema em Paris, o Action-Républic.
Otrabalho “sério” de programação começou aí. Com ambição, entenda-se. Paulo Branco queria que fosse uma sala de referência, um lugar para cinéfilos. Roland Barthes, Gilles Deleuze, Truffaut, Godard, Terence Malick, que na altura vivia em Paris, eram espetadores da sala. “Foi aí que estreei «O Amor de Perdição», do Manoel de Oliveira. «Trás-os-Montes», do António Reis e Margarida Cordeiro. «Torre Bela» do Thomas Harland... Foi aí que reeditei os filmes do Mizoguchi; mostrei os filmes do Godard, do período militante dele, que não deixava ver a ninguém. Os filmes da Marguerite Duras, da Susan Sontag...”. Admite que cada dia era “um dia de descoberta e de enorme prazer na relação cinematográfica com o que mostrava.” Estórias não faltam, mas nem sempre lhe apetece contá-las. En passant, ficámos a saber que guardou cópias de filmes de Jean Eustache e Philippe Garrel a pedido dos próprios, e que foi na sua sala parisiense que Jacques Rivette “refez os negativos”de «L’Amour Fou», cuja cópia tinha ardido.
Ocinema, está claro, tinha-o tomado de assalto. Tornou-se produtor em 1979 e passou a trabalhar entre Paris e Lisboa, através de várias empresas, mantendo-se um produtor ativíssimo (com mais de três centenas de filmes no currículo), quando decide adicionar a distribuição e exibição cinematográfica ao seu ‘portefólio’. Várias salas depois (King, Monumental..) e peripécias mil, o Nimas passou a ser o seu ‘castelo’. Sem ponte levadiça nem fosso, antes com uma cadeira de palha entrançada, discretamente colocada ao fundo da sala.
O Nimas celebra, em 2025, 50 anos de vida, 30 dos quais nas mãos da Medeia Filmes, de Paulo Branco. É um local de encontro e de descoberta da 7ª Arte. Uma espécie de rastilho cinéfilo que lhe dá “um prazer enorme”. Além do empenho em manter “uma programação diversificada e de grande qualidade”, congratula-se com o crescimento do número de espetadores, fruto do trabalho de uma equipa dedicada que procura reinventar o ato de ver cinema em sala.
Com uma lotação de 200 lugares, o Nimas fechou 2024 com 62.117 espetadores. No 1º semestre deste ano, já contabiliza cerca de 40 mil espetadores, 20% mais do que no ano anterior. Até durante a pandemia, em que estiveram meses fechados. “Foi sempre a subir e, pelos números que tivemos até agora, vamos acabar o ano com uns 80 mil espetadores. Mas a ambição é manter uma boa programação”, sublinha. Numa altura em que o encerramento de salas em Portugal segue a um ritmo assustador – desde o início do ano, o país perdeu 37 ecrãs de cinema e em breve perderá mais nove, devido ao encerramento de multissalas e multiplexes da Nos, UCIe Cineplace no Seixal, Guia, Tavira, Viseu, Maia, Vila Nova de Gaia e Funchal – há outros números igualmente ilustrativos que dão que pensar. Até ao final de setembro houve menos 4,3% de espetadores nas salas de cinema, comparando com o mesmo período de 2024. A queda na afluência, o preço dos bilhetes e o streaming serão fatores que pesam neste desfecho.
Fala-se muito na morte do cinema e das salas de cinema, refere Paulo Branco, mas já nada o assusta, garante. “Este trabalho de que gosto muito faz parte de duas coisas. Uma enorme observação e respeito pelo trabalho que os outros fazem e uma enorme invenção. Há muita coisa que fui apanhar em programações que ia vendo em determinados circuitos de província em França, onde eles faziam números absolutamente extraordinários. Temos de ter essa humildade de perceber que há quem faça um trabalho extraordinário e melhor que o nosso. E tentar perceber como e porquê”, diz Paulo Branco. As Netflix e afins não podem servir de desculpa, salienta. “Se as pessoas sentirem que há uma relação com o cinema que é diferente de tudo o resto, que há, de uma certa maneira, uma autoria, o público volta”, afiança o produtor, para quem é importante saber que há uma resposta ao trabalho feito. “Nós programamos para nós, mas sempre para partilhar o nosso prazer em ver os filmes com os outros. E temos de fazer sentir isso ao público que nos procura. O autismo não funciona”, conclui.
A vasta rede de contactos e amizades construída desde o tempo do Action-République tem vindo, amiúde, a desaguar no Leffest - Lisbon Film Festival, que leva a chancela Paulo Branco/Medeia Filmes (ver texto ao lado). A programação da 19ª edição, que decorre de 7 a 16 de novembro, em vários espaços de Lisboa, propõe estreias, homenagens e retrospetivas, concertos e exposições, conversas e masterclasses com nomes de referência da 7ª Arte. Mas não só. O festival também dá palco a talentos emergentes, artistas cujas práticas se cruzam com o cinema e cineastas que mantêm uma linguagem singular, resistindo às pressões comerciais da indústria. A sala de cinema enquanto lugar de emoções partilhadas? Sempre.

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