Pois, há momentos assim, em que a memória viaja e se perde em imagens ou diálogos... de filmes. Neste caso, a viagem fez-se na companhia de um cinéfilo protagonizado pelo ator francês Jean-Claude Brialy num velhinho filme de Godard, “Tous les garçons s’appellent Patrick” (1957).
Brialy aborda uma jovem japonesa no Jardim do Luxemburgo, em Paris, e diz-lhe tudo o que sabe sobre o Japão: “Mizoguchi-Kurosawa”. Piada de cinéfilo e ponto de partida para uma sugestão que envolve o grande ecrã: um ciclo de cinema japonês contemporâneo para não perder de vista o que se faz atualmente no país do Sol Nascente.
Quatro filmes nunca estreados no circuito comercial vão trazer-nos as contradições do ser japonês, o humanismo que, segundo a lente de Kurosawa (sim, novamente ele), não consiste em olhar na mesma direção, mas em ver a mesma coisa a partir de dois mundos diferentes.
As hostilidades abrem com “A living promise” (2016, de Ishibashi Kan, que nos conta a história de um workaholic em recuperação, Nakahara, CEO de uma empresa de tecnologia. Perturbado pelo telefonema de um velho amigo com quem tinha cortado relações. Decide visitá-lo na sua terra natal e descobre que este morreu entretanto e que deixara uma causa pendente... Não vamos ser spoilers, mas podemos revelar que as sessões têm entrada gratuita, são às 17h00, sempre ao domingo, no Museu do Oriente, já a partir de dia 6.
E nem de propósito, seguimos para o “museu do cinema”, vulgo Cinemateca, em Lisboa, onde decorre a segunda parte do ciclo “70 anos, 70 filmes: 35 histórias do cinema contemporâneo”. Ora, como se diz no título, o cinema faz bem à pele e à alma e, mais do que recapitular a matéria dada, este ciclo pretende ser um itinerário que percorre alguns pontos importantes do cinema dos nossos dias, muitas vezes com ‘paragens’ que não são as mais óbvias.
Aliás, os programadores fizeram questão em deixar de fora alguns pesos pesados como Scorcese e Moretti, por exemplo. A ideia é apresentar 35 obras que vale a pena conhecer (ou rever) e que nos mostram o vigor do cinema contemporâneo muito para lá dos “holofotes”.
Duas sugestões já ao virar da esquina. Em “The Circle” (título internacional de “Dayereh”), o iraniano Jafar Panahi – Leão de Ouro no Festival de Veneza – dá-nos um dos olhares mais fulminantes sobre a repressão da sociedade iraniana a partir do retrato entrecruzado de várias mulheres em situações de dificuldade: seja na sequência do nascimento de uma rapariga, na proibição de circulação sem companheiro, na sequência de um aborto, ou na fuga de uma prisão. Labirinto urbano. Labirinto humano. Lições de vida by Panahi.
Jia Zhangke remexeu nas memórias da sua juventude para nos pintar um fresco a que chamou “Plataforma” (“Zhantai” no original) e que retrata a evolução da sociedade chinesa na década de 80, acompanhando as deambulações de um grupo de teatro itinerante. Proibido na China devido à forma crítica como retrata a evolução da sociedade é, talvez, um dos seus filmes mais marcantes e serve de pedra angular para as obras que assinou posteriormente.
O cinema como antídoto para a realidade? Não. O cinema como forma de pensar e questionar a realidade. l AP