Depois de António Costa ter assumido em outubro que não fazia sentido prolongar o regime do Regime de Residentes Não Habituais (RNH), por considerar que esta é "uma medida de injustiça fiscal, que já não se justifica e que é uma forma enviesada de inflacionar o mercado de habitação, que atingiu preços insustentáveis", o Partido Socialista (PS) decidiu fazer uma suavização do fim do regime fiscal, através de uma alteração à proposta de Orçamento do Estado para 2024 (OE2024) que visa reforçar o regime transitório em 2024, incluindo quem comprove até ao final deste ano a intenção de trabalhar e viver em Portugal. Com críticas uma medida eleitoralista, promotores imobiliários reiteram apelo para que o Governo recue com o fim do regime fiscal do RNH, que vai ser mantido apenas para professores e investigadores do Ensino Superior. Para o fiscalista Samuel Fernandes de Almeida da MFA Legal o alargamento do RNH para 2024 abre a porta para uma nova reapreciação do tema pela nova maioria Parlamentar.
A proposta dos socialistas vai, pois, permitir às pessoas que se inscrevam como residentes fiscais até ao final de 2024 a possibilidade de ainda beneficiarem deste regime fiscal, mas terão de comprovar que preparam a sua mudança ainda durante 2023, ao invés do que era proposto pelo Executivo, onde este alargamento era apenas até 31 de dezembro de 2023.
"O primeiro-ministro António Costa quando anunciou o fim desta medida referiu dois aspetos associados a ela: que os objetivos já tinham sido atingidos, mas não sei quais. Eu acho que ninguém sabe quais eram os objetivos. Segundo aspeto, disse que este programa, de uma forma enviesada, estava a inflacionar o preço das casas. Mas ninguém sabe com que base é que disse isso", refere em declarações ao Jornal Económico (JE), Paulo Caiado, presidente da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP).
Para fiscalista Samuel Fernandes de Almeida, Managing Partner da MFA Legal, sendo “positivo” vigência restrita do regime em 2024, “não deixa de ser um erro por vários motivos”. Frisa que “a revogação do regime tal como anunciada, sem qualquer estudo prévio ou análise das suas vantagens para o País, constitui um golpe na imagem do país, enquanto centro de captação de talento e investimento estrangeiro. E a incerteza – mesmo que venha a ser revogada esta medida – é um fator crítico de dissuasão de qualquer decisão de investimento”.
De igual modo, frisa o fiscalista, a votação da Proposta de Lei do OE/2024 “só é possível devido a uma fraude constitucional, que passa pelo diferimento da promulgação do despacho presidencial de dissolução do Parlamento. Com um Governo demissionário, a legitimidade política da atual maioria parlamentar está ferida de morte e como tal o novo OE2024 deveria cingir-se a temas e matérias de mera execução orçamental, deixando temas estruturantes de política pública para a nova maioria parlamentar”.
Para o líder da APEMIP os argumentos que foram atingidos os objetivos deste regime fiscal e que este estava a inflacionar os preços das casas são “completamente incompreensíveis”, relembrando que este foi um programa que teve início em 2019. "Passaram 15 anos há 75 mil residentes não habituais em Portugal, se os dividirmos por 15 anos, temos um valor que obviamente qualquer pessoa percebe que não é este. Isto não vai inflacionar o mercado de uma forma enviesada coisa nenhuma. Ponto final", afirma, salientando que o que aconteceu neste período foi que muito do tecido económico português percebeu que o tema não é o da equidade fiscal, porque a mesma não existe.
"Por uma razão simples, porque todos os outros países da Europa têm regimes de atração, de talento e de atração de investimento para as suas economias. E não parece que a nossa economia esteja numa posição tão saudável que possa, de facto dizer que este sistema não permite uma total equidade fiscal para os cidadãos. Parece-me que só um Estado muito rico é que se pode dar ao luxo de o fazer. O tema não pode ser eleitoralista deve ser um tema a pensar no bem do nosso país. Espero que o Governo recue muito mais do que recuou até agora", sublinha.
Patrícia Barão, head of residential da consultora imobiliária JLL, vê com bons olhos este recuo do Governo, defendendo ao JE que todas as ações que de alguma forma venham atrasar ou reverter aquilo que existe até à data é bom. "Acredito que possa ter existido, no fundo, uma reflexão sobre o impacto que esta medida ou que o acabar com esta medida possa ter e, de alguma forma, haja uma intenção de rever algumas das situações. Vejo isso de uma forma muito positiva", realça.
De resto, a responsável destaca que é preciso "desmistificar" que o fim do regime do RNH não é um lobby do imobiliário, mas que esta é uma medida abrange todas as indústrias e todos os sectores. "O facto de termos à data de hoje empresas que estão a atrair talento que não existe cá, e isto é um ponto importante porque as pessoas acham que estas pessoas vêm tirar o emprego aos portugueses. Não é verdade", refere, dando o exemplo da Fundação Champalimaud, onde se vê uma série de cientistas, de investigadores, que são claramente pessoas que vieram trazer para Portugal o conhecimento e talento de áreas que o país não tinha.
Alterações propostas pelo beneficiam cidadãos fora da UE
Sobre a proposta do grupo parlamentar do PS com uma nova redação para o regime transitório aplicável ao regime do RNH, Samuel Fernandes de Almeida da MFA Legal resume nos seguintes termos: “admite a vigência do regime para todos os que preencham os critérios de residência e disponham de visto de residência válido até 31.12.23; e para todos aqueles que transfiram a sua residência apenas em 2024, admite a sua inscrição até março do ano seguinte desde que preencham uma das condições previstas na proposta”.
Neste último caso, abre-se a porta às pessoas que se inscrevam como residentes fiscais em 2024 a possibilidade de ainda beneficiarem deste regime fiscal, mas terão de comprovar que preparam a sua mudança ainda durante 2023 mediante os seguintes critérios agora fixados: a promessa ou contrato de trabalho até 31.12.23; contrato de arrendamento celebrado até 10.10.23; promessa ou reserva sobre imóvel celebrado até 10.10.23; matrícula dos dependentes em estabelecimento de ensino até 10.10.23; visto de residência válido até 31.12.23; ou procedimento iniciado até 31.12.23 para a concessão de visto ou autorização de residência.
Para Samuel Fernandes de Almeida, este último ponto “é particularmente relevante para todos os cidadãos não residentes na UE, vide todos aqueles que estão à espera da concessão de vistos ou fizeram investimentos ao abrigo do golden visa, viabilizando o seu posterior acesso ao regime de RNH, o qual poderá ser feito mesmo depois de 2024, valendo nesse caso para o período remanescente dos 10 anos de vigência deste regime”. Já para os cidadãos provenientes da UE, explica, poderão aceder ao regime diretamente em 2023, ou mesmo em 2024, desde que preencham uma das condições acima enunciadas.
Por outro lado, o fiscalista alerta ainda: “não se entende a réplica da solução então preconizada para os golden visa, com a introdução de uma limitação temporal (10 de outubro de 2023), como pretensa salvaguarda do princípio da segurança e tutela das expetativas. O anúncio de um projeto de diploma não deveria ter qualquer impacto em matéria de estabelecimento de um regime transitório. O que deveria ser feito e simplificaria muito o regime seria salvaguardar a adesão ao regime a todos os potenciais aderentes ao regime de RNH até 31.12.2023. Aliás, nem se entende a diferença estabelecida entre contratos de trabalho e a promessa de aquisição de um direito real sobre um bem imóvel”.
Numa palavra, conclui o fiscalista, “esta proposta acaba por viabilizar uma articulação entre os procedimentos de emigração e o registo no RNH. E viabiliza uma vigência restrita do regime em 2024, abrindo a porta para uma nova reapreciação do tema pela nova maioria Parlamentar”.
Manobra política? "Assunto não deve ser de esquerda ou direita"
Com a marcação antecipada de eleições legislativas para 10 de março, a alteração desta medida poderá ser entendida pelos responsáveis do sector imobiliário como uma manobra política do Governo, mas também para alguma margem de manobra a um eventual Executivo de direita após as eleições. No entanto, para Paulo Caiado este "assunto não deve ser de esquerda ou direita", mas um assunto que interessa a todos.
"O que me parece é que o Governo se calhar fez aquilo de uma forma um pouco impulsiva. Porque se foi de uma forma enfim estruturada, foi a pensar nos votos de uma forma crua, pura e dura. Quero pensar que o fez de uma forma impulsiva e que de facto, quando confrontado com os múltiplos aspetos que isto implica, de jovens quadros que estão na gestão, nos unicórnios e nas startups que vieram para cá atraídos por um benefício fiscal e que, previsivelmente, se iriam embora", salienta o presidente da APEMIP, considerando que foi gerada alguma contra informação sobre este tema.
"Quando se disse que estes RNH custaram a Portugal mais de 1.300 milhões de euros, o que queriam dizer é que se estes RNH tivessem pago o mesmo que pagam os portugueses em sede de IRS, o país teria arrecadado mais 1.300 milhões de euros. Mas não foi isso que disseram, quando como é óbvio, qualquer pessoa que pare para pensar um bocadinho percebe que estas pessoas pagam IVA em Portugal, pagam IUC em Portugal, quando compram uma casa pagam IMT, pagam imposto de selo e pagam impostos em sede de IRS, 10% no caso dos reformados e 20% nos outros", enfatiza.
Por sua vez, Patrícia Barão não tem dúvidas de que este recuo do Executivo representa uma manobra política. "Por outro lado, também estamos numa altura de uma grande instabilidade política e estarmos a viver esta instabilidade política faz com que nós, nesta altura, não estejamos aqui a tomar decisões muito impactantes", realça.
Questionado sobre se este alargamento até ao fim de 2024 poderá levar a um maior número de pedidos, Paulo Caiado é taxativo: "não há corrida".
"Podem vir aqueles que estavam a pensar em concretizar o mais rapidamente possível, mas não vejo agora que haja franceses ou americanos que venham a correr para Portugal porque o regime vai acabar, então vamos a correr para Portugal. Isso não existe. Há um dano que já está feito, que é um dano reputacional, é um sinal que passa lá para fora. O dano está feito e não é bom", afirma.
Opinião diferente tem Patrícia Barão, apesar de assumir que "não é um bom indicador" o facto de Portugal não estar numa excelente posição no contexto europeu face à demissão do primeiro-ministro. "Por outro lado, nós temos solução à vista. As pessoas que estão a olhar para Portugal para poderem vir para cá, elas vão continuar a querer aproveitar essa oportunidade. Quanto mais tempo nós tivermos o programa melhor. Esta instabilidade não nos favorece, não é boa para ninguém, mas acredito que tudo o que leve a uma maior análise do impacto de acabar com esta medida, acho que é uma ótima decisão", salienta.
Criado em 2009, o RNH tem como objetivo atrair pensionistas e trabalhadores, estrangeiros ou portugueses, emigrados há mais de 5 anos, com profissões consideradas de alto valor acrescentado.
Trabalhadores estrangeiros ou portugueses emigrados há mais de 5 anos que optem por residir em Portugal têm uma redução do IRS durante 10 anos, com uma taxa de 20%, independentemente dos seus rendimentos. Os pensionistas têm uma taxa de 10% (estavam isentos até 2020).
O Governo entendeu que é altura de acabar com este regime, e vai mantê-lo apenas para professores e investigadores do Ensino Superior. Uma decisão que tem sido alvo de várias críticas, nomeadamente do sector imobiliário, que na semana passada apresentou um manifesto subscrito por quase 60 pessoas, incluindo gestores e ex-governantes, defende que o racional apresentado para o fim do regime fiscal do RNH previsto no OE2024 não foi "comprovado". Mas também Mário Centeno, governador do Banco de Portugal, já manifestou não estar “completamente” convencido de que este programa seja causador de problemas no mercado da habitação, considerando que “é uma questão política”.