À primeira vista, a alínea “f” do parágrafo 43 do plano de reestruturação da TAP acertado entre o Governo e a Comissão Europeia, em dezembro de 2021, parece, no mínimo, inócuo. “Pagamento de contingências associadas ao desinvestimento na subsidiária […] EUR milhões [….]”, lê-se na página 12 do documento. Mas isto é tudo que o que se pode perceber na versão acessível aos contribuintes portugueses, que estão e vão pagar 3,2 mil milhões de euros na companhia aérea, agora oficialmente em privatização.
A versão secreta do documento, a que o Jornal Económico teve acesso, conta outra história e levanta uma série de perguntas. Algumas de difícil resposta.
Tudo porque, nesta versão completa, entre os parênteses rectos que assinalam as partes omitidas percebe-se que a subsidiária de que fala o parágrafo 43 é a M&E Brasil (a ex-VEM); percebe-se que o valor da contingência associada é de 110 milhões de euro e, mais surpreendente, que há uma oferta em cima da mesa para a compra da M&E.
Assim, o parágrafo sem partes omitidas é este: “pagamento de contingências associadas ao desinvestimento da subsidiária M&E Brasil até aos 110 milhões de euros (dos quais 51% relacionados com contingências salariais, 36% de contingências fiscais e 13% de contingências civis e ambientais), que têm de ser assumidas pelo vendedor e não podem ser passadas ao adquirente no contexto de uma venda do ativo”. No final das aspas um número a remeter para uma nota de rodapé, a 32.
Também essa nota de rodapé está omitida da “versão pública”. Mas na versão secreta ficamos a saber que a “TAP SGPS recebeu em 5 de outubro de 2021 uma oferta vinculativa para a aquisição da M&E Brasil por parte da ITA Transportes Aéreos Ltda, uma empresa incorporada no Brasil”. A nota também especifica que o negócio está sujeito à condição de que as contingências sejam assumidas pelo vendedor, ou seja, o Estado.
Este parágrafo 43 está incluído na seção do plano em que a Comissão Europeia lista as medidas assumidas pela TAP SGPS como “contributos próprios” para a sua reestruturação. Já agora, a Comissão levanta dúvidas sobre a percentagem de “contributos próprios” da TAP SGPS para o plano global, que “na melhor das hipóteses” ascende a 36%.
Portanto, perante Bruxelas o Governo português inclui nas medidas que está disposto a despender, no máximo, 110 milhões para se livrar, de vez, da TAP Manutenção & Engenharia Brasil.
Por alguma razão, o negócio acabou por não se concretizar. Em dezembro de 2021, pela altura em que o plano estava a ser divulgado [na sua versão com omissões], a TAP decidiu encerrar a TAP M&E Brasil “depois de não ter conseguido encontrar um comprador viável”, como escreveu a imprensa.
O que se passou depois resultou num custo dez vezes superior. Vamos por partes.
Na apresentação das contas de 2021, em 11 de abril de 2022, o administrador da TAP, Gonçalo Pires, explicou a principal razão pelos prejuízos recorde de 1.600 milhões de euros: os pagamentos associados à TAP M&E Brasil. A explicação é simples: ao longo de múltiplos exercícios a holding TAP SGPS, a “TAP má”, camuflou os prejuízos da TAP M&E com injeções de dinheiro que pedia emprestado à “TAP boa”, a TAP, SA, onde estão todos os activos valiosos do grupo.
“No final do ano passado, as contas a receber da TAP SA pela TAP SGPS totalizavam 884,7 milhões (a quase totalidade devido à M&E Brasil), segundo o relatório e contas”, escrevia na altura o jornal Eco.
Só que a holding TAP SGPS não tinha (e ainda não tem) dinheiro. Aliás, tem capitais próprios negativos de mais de 1,2 mil milhões de euros. Como não podia pagar o dinheiro pedido à “TAP boa”, a gestão da empresa constituiu imparidades nas contas de 2021. Valor? 884 milhões de euros O relatório e contas enviado na altura à CMVM dá conta de outro custo, uma provisão “no montante de 140,3 milhões referente à estimativa de encargos adicionais que a TAP terá que suportar relacionados com a referida reorganização societária, incluindo os decorrentes do processo de liquidação da TAP ME Brasil”. Ou seja, custo total do desinvestimento na TAP M&E? Mais de 1.020 milhões de euros, quase dez vezes o que custaria a venda à ITA Transportes Aéreos Ltda, um negócio que não veio a público.
OJEperguntou ao Ministério das Finanças e ao das Infraestruturas as razões que estiveram por detrás da não concretização da venda. OJEtambém perguntou de quem partiu a ideia de omitir o negócio da versão pública, da Comissão ou do governo português? Até ao fecho desta edição ainda não tinha recebido respostas.
Resta saber quem é a ITATransportes Aéreos, que fez uma oferta vinculativa tão séria que mereceu ser alvo de discussão com Bruxelas e inclusão nas medidas.
Uma busca rápida à imprensa brasileira permite ficar a saber que ainda em 2021 , o proprietário da ITA, Sidnei Piva de Jesus, foi acusado por centenas de investidores de fraudes relacionadas com vendas de criptomoedas. E no dia 17 de dezembro, uns meros quatro dias antes da apresentação oficial do plano, o certificado de operador aéreo da Itapemirim Transportes Aéreos (ITA) foi cancelado pela Agência Nacional de Aviação Civil brasileira e as suas atividades foram suspensas.