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SIBS arrisca até dois anos sem poder participar em procedimentos de contratação pública

A Autoridade da Concorrência aplicou uma multa de 14 milhões de euros à dona do Multibanco no mês passado e acusou a empresa de “abuso de posição dominante” no sector dos pagamentos. Contactado pelo Jornal Económico, o advogado Miguel Miranda, sócio da Raposo, Sá Miranda & Associados, explica as consequências da prática quer para a SIBS quer para os consumidores.

O advogado Miguel Miranda, sócio e coordenador da área de prática de Concorrência e União Europeia na Raposo, Sá Miranda & Associados (PRA) considera que a multa de 14 milhões de euros aplicada pela Autoridade da Concorrência (AdC) à SIBS pode fazer com que a dona do Multibanco altere o seu modelo de negócio, tornando-o mais “amigo” das práticas pró-concorrenciais. Em entrevista ao Jornal Económico, o jurista explica as implicações concretas desta coima na empresa e nos consumidores. Nomeadamente, o risco de até dois anos sem poder participar em procedimentos de contratação pública.

Que leis de concorrência estão em incumprimento?

Importa clarificar, antes de mais, que a decisão final da AdC ainda não foi publicada a esta data, pelo que a resposta às questões colocadas baseia-se no comunicado e na informação que se encontra disponível. Neste pressuposto, do que se sabe, a infração sancionada pela Autoridade da Concorrência consistiu no abuso de posição dominante no sector dos serviços de pagamento, pela SIBS, ao obrigar os emitentes e adquirentes de cartões de pagamento que procuram aceder aos sistemas de pagamento do grupo a contratar também os seus serviços de processamento – tal abuso está tipificado, a nível nacional, no art. 11.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio (Regime Jurídico da Concorrência) e, a nível europeu, no art. 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (abreviadamente, TFUE).

Além da multa, que outras consequências existem para a dona do Multibanco?

Em abstrato, além de coimas, as empresas infratoras podem sofrer outras sanções. São exemplos de sanções acessórias a publicação, no Diário da República e num dos jornais de maior circulação, a suas expensas, extrato da decisão ou condenação, bem como a privação do direito de participar em procedimentos de contratação pública pelo prazo máximo de dois anos. Além disso, e sempre que a decisão condenatória implique também medidas corretivas (medidas destinadas a solucionar ou reparar o comportamento ilícito), a empresa infratora pode sofrer a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de não acatamento da decisão da AdC.

Existem precedentes para recorrerem da decisão?

Não há registo, em Portugal, de condenações prévias e idênticas da SIBS. De qualquer forma, as decisões sancionatórias da AdC são sempre passíveis de recurso para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS). Note-se, porém, que o recurso não suspende a execução das coimas. Quando for o caso, decisões interlocutórias, despachos e outras medidas impostas são também passíveis de impugnação judicial. Por sua vez, das sentenças eventualmente proferidas pelo TCRS, cabe ainda recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, bem como possibilidade de colocar questões de interpretação e densificação de Direito para o Tribunal de Justiça da União Europeia.

As empresas prejudicadas podem pedir indemnizações?

Sim. Paralelamente à decisão de condenação da AdC, ao abrigo da Diretiva 2014/104/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de novembro de 2014 e da respetiva lei de transposição nacional (Lei n.º 23/2018, de 5 de junho), que regulam o direito à indemnização por infração ao Direito da Concorrência, qualquer pessoa, singular ou coletiva, que sofra danos por infrações deste tipo, pode peticionar a reparação integral dos mesmos. A indemnização abrange quer os danos emergentes, quer os lucros cessantes efetivamente sofridos. O ressarcimento é prosseguido através de ações judiciais, junto do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão – as chamadas ações de private enforcement.

A Concorrência faz referência à prática de tying, que restringe a concorrência e a inovação no sector. Como por exemplo?

tying (venda ligada/subordinada) é a situação em que os clientes que compram um produto (produto subordinante) são obrigados a comprar igualmente outro produto dessa empresa (produto subordinado) – neste caso, de acordo com o comunicado da AdC, os adquirentes e emitentes de cartões teriam de processar também as suas transações com o grupo SIBS. A transação seria condição de acesso aos produtos/serviços principais. Especificamente, quanto à afetação da inovação no sector, esta pode ocorrer, principalmente, em virtude do encerramento do mercado das transações (mercado subordinado). Uma vez controlado em virtude da subordinação de produtos, haverá pouco interesse e redução de incentivos e investimentos em investigação e desenvolvimento de novos produtos ou otimização dos já existentes, diminuição ou estagnação das alternativas disponíveis, menor cuidado com afetação de recursos e redução na quantidade e qualidade da oferta.

A prática em que cientes que compram um produto e são obrigados a comprar outro da mesma empresa leva a pouco interesse e menos investimentos em investigação e criação de novos 

De que forma é que os consumidores são afetados pela prática de que a SIBS é acusada?

De acordo com o comunicado da AdC, a prática terá tido impacto a dois níveis. Por um lado, terá limitado a entrada e expansão de processadores alternativos à SIBS FPS, uma vez que, para aceder aos sistemas de pagamento do grupo SIBS, os adquirentes e emitentes de cartões teriam de passar a processar as suas transações com este grupo. Tal terá restringido a possibilidade de estas entidades optarem por processadores alternativos, capazes de oferecer um serviço mais adequado às suas necessidades, a nível de preços ou de funcionalidades. Aliás, alguns adquirentes teriam mesmo a capacidade de processar as suas próprias transações, não podendo fazê-lo se aceitassem pagamentos ao abrigo dos sistemas do grupo SIBS.

Por outro lado, a conduta terá limitado a capacidade de diferenciação e de inovação dos adquirentes e emitentes, com impacto negativo nos serviços que oferecem a comerciantes e consumidores. Em virtude destas limitações, verificam-se limitações ao nível da oferta dos produtos e serviços, quer em termos de qualidade, quer de alternativas e funcionalidades, não garantindo, assim, uma ampla panóplia ao dispor da escolha do consumidor. Além disso, este tipo de práticas também tem tendência a aumentar os preços de mercado, que se podem vir a repercutir, a final, no consumidor.

Este tipo de práticas também tem tendência a aumentar os preços de mercado, que se podem vir a repercutir, a final, no consumidor

Como é que esta multa pode mudar a forma como funcionam os sistemas de pagamento do grupo?

As coimas aplicadas pela AdC, têm, além de um efeito condenatório, um efeito dissuasor, pelo que após o processo de condenação, estima-se ser mais provável a atenção e cuidado no cumprimento das regras do Direito da Concorrência (até porque a reincidência é critério de determinação do valor da coima em processos futuros). Assim, em consequência de uma condenação, poderá expectar-se que venha a ser apresentado um modelo de negócio mais consentâneo com os valores jusconcorrenciais: livre de imposições de barreiras à entrada no mercado dos sistemas de pagamento e transações, de práticas agressivas e restritivas perpetradas em função da sua elevada posição de mercado e de imposição de obrigações inexigíveis a outros players, em virtude dessa maior pressão negocial, o que implicará não subordinar o acesso a determinados produtos à aquisição de outros e a permissão de recurso a processadores alternativos no âmbito de serviços e mercados conexos.