Ingerência política, participação da tutela no processo de indemnização de 500 mil euros a Alexandra Reis e acontecimentos no Ministério das Infraestruturas que levaram à intervenção do SIS são alguns dos temas que ficaram de fora das conclusões do relatório preliminar da CPI à tutela política da gestão da TAP, cujo documento com perto de 200 páginas foi entregue no Parlamento nesta terça-feira à noite. Relatório passa a maior parte das responsabilidades para a ex-CEO, numa conclusão que é repudiada pela defesa de Christine Ourmières-Widener que considera, em declarações ao Jornal Económico, "lamentável e pouco sério".
"Trata-se de mais um documento feito à medida, que pretende dar uma roupagem jurídica a um despedimento puramente político. Tem falhas e omissões graves e são retirados apenas os excertos dos depoimentos que interessam ao Governo", avançou ao Jornal Económico a advogada Inês Arruda, sócia da Vasconcelos, Arruda & Associados, dando conta que, com as conclusões do relatório, a sua cliente "ficou absolutamente em choque, pois perante tudo aquilo que foi dito pelos diversos intervenientes na CPI, este relatório está longe de refletir o que se passou".
Inês Arruda diz que "falta, por exemplo, uma parte muito importante, em que o ex-secretário de Estado Hugo Mendes refere que "a Engenheira Christine pediu autorização ao acionista e recebeu-a". "E também a parte em que o ex-ministro Pedro Nuno Santos pensava que o seu secretário de Estado estava coordenado com as Finanças, porque eles falavam numa base diária", acrescenta a advogada, que está a ultimar processos judiciais contra o Estado. Tal como o JE noticiou, em 23 de junho, a defesa de Ourmières-Widener tenciona “impugnar judicialmente a demissão” por justa causa e pedir uma indemnização milionária, que poderá superar os três milhões de euros, por danos não patrimoniais e reputacionais.
Segundo a defesa da gestora francesa, "também não se extraem ilações sobre a afirmação de Pedro Nuno Santos na CPI que consta do relatório, quando o governante assume a decisão de saída de Alexandra Reis enquanto representante do acionista. "Era para mim fundamental, independentemente da opinião que eu, enquanto representante do acionista ou da tutela setorial, tivesse sobre a Engenheira Alexandra Reis, era importante, para mim, ter uma Comissão Executiva coesa" é a afirmação do antigo ministro reproduzida no relatório.
"Em vários momentos, os antigos secretário de Estado e ministro referem que apoiaram a decisão em representação do acionista e isso é ignorado", frisa Inês Arruda, recordando que "em momento algum evocou ilegitimidade para apreciar a questão ou para dar as autorizações que deu. O Governo não é bicéfalo. Se existe uma descoordenação entre as tutelas e atua como tendo capacidade para o ato isto não pode, obviamente, aproveitar o próprio Governo e prejudicar terceiros de boa-fé".
Governantes ilibados
O documento iliba Pedro Nuno Santos, alegando que o ex-ministro das Infraestruturas não conhecia o clausulado do acordo assinado com Alexandra Reis. A maior parte das ‘culpas’ são, assim, atribuídas à ex-CEO da TAP e aos advogados da companhia, com a versão preliminar do relatório a concluir que as demissões da CEO e do chairman da TAP foram feitas de acordo com as regras, retirando responsabilidades ao antigo governante que escapa quase incólume, bem como Fernando Medina. Também João Galamba não é beliscado, uma vez que o caso Frederico Pinheiro ficou de fora.
Pedro Nuno Santos escapa quase incólume, bem como Fernando Medina, com a versão preliminar a concluir que as demissões da CEO e do chairman da TAP foram feitas de acordo com as regras. A este respeito, a relatora da CPI à TAP, Ana Paula Bernardo, diz mesmo que o processo de demissão “decorreu segundo os normativos existentes, nomeadamente o direito a contraditório”. Já no processo de indemnização a Alexandra Reis, a deputada socialista passa a maior parte das responsabilidades para a ex-CEO e para os advogados.
O relatório conclui que a negociação foi feita entre os advogados e que o Ministério das Infraestruturas (MI) não conhecia o clausulado do acordo, rejeitando ainda que a utilização de mensagens de WhatsApp - onde Pedro Nuno Santos deu o seu O.K. ao pagamento da indemnização - permita concluir que o processo não tenha sido formal, defendendo a legalidade da demissão da ex-CEO. A deputada do PS chega mesmo a escrever que Pedro Nuno Santos e o seu secretário de Estado Hugo Mendes “assumiram as suas responsabilidades políticas na gestão deste processo, tendo apresentado as suas demissões em 28 de dezembro de 2022”.
Na CPI, Christine Ourmières-Widener, exonerada por justa causa na sequência deste caso, afirmou aos deputados ser "um mero bode expiatório" e acusou o Governo de fazer um despedimento "ilegal e pela televisão", sem respeito por uma executiva sénior. A ex-presidente executiva da TAP disse que recebeu uma mensagem do ex-secretário de Estado Hugo Mendes, em 02 de fevereiro de 2022, a informar que o ex-ministro Pedro Nuno Santos autorizava a indemnização a Alexandra Reis e a pedir que fechasse o acordo, sublinhando que "não tomou nenhuma decisão relevante" no processo de saída da ex-administradora e que atuou como um intermediário entre o Governo e os advogados.
Recorde-se que a cessação de funções de Alexandra Reis na companhia aérea foi levada a cabo pelas sociedades de advogados SRS, do lado da TAP, e Morais Leitão, pela parte da ex-administradora, no espaço de cerca de 10 dias. Segundo o relatório, a figura de “renúncia por acordo” encontrada pelos advogados não se encontra prevista no Estatuto de Gestor Público (EGP), tal como apontado pela Inspeção-Geral de Finanças (IGF) e “as sociedades de advogados contratadas pelas duas partes elaboraram uma proposta de acordo de cessação de funções de uma Administradora de uma empresa pública à revelia do Estatuto do Gestor Público”.
No documento, a deputado do PS conclui ainda que o “ato praticado” por Ourmières-Widener e Manuel Beja relativo à saída de Alexandra Reis “careceria de deliberação da Assembleia Geral das diversas 23 sociedades do Grupo TAP onde a referida Administradora exercia funções, o que não aconteceu”. Uma posição que a ex-CEO já refutou quando defendeu na CPI que o Ministério das Infraestruturas, então liderado por Pedro Nuno Santos, estava ao corrente de todo o processo e mandou a gestora francesa negociar a indemnização a Alexandra Reis.
O relatório preliminar frisa que o processo de saída de Alexandra Reis foi impulsionado pela ex-CEO, Christine Ourmières-Widene, tendo sido conduzido pelos advogados das duas partes sem intervenção do departamento jurídico da companhia aérea.
Os advogados externos da TAP- da sociedade SRS – são, assim, responsabilizados, ficando com o ónus de terem negociado um acordo que viola o EGP e elaborado um comunicado que foi enviado à CMVM com informação que não estaria 100% de acordo com a verdade, sobre a demissão de Alexandra Reis.
Relatório assume que Governo precisa de coordenação, mas responsabiliza ex-CEO
O documento desresponsabiliza ainda a tutela sectorial (MI) e financeira (Finanças), ainda que sinalize a necessidade de melhorar a articulação entre a tutela financeira e sectorial das empresas nas quais o Estado é acionista. Aliás, esta é uma das recomendações que consta do relatório escrito pela deputada do PS.
A relatora socialista considera que o Governo deve “garantir a melhoria da articulação entre a tutela financeira e setorial, assegurando que a divisão e conexão de responsabilidades é clara e concebida para servir o interesse público; esta melhoria deve ser refletida nomeadamente na definição de orientações e objetivos (incluindo a avaliação do desempenho no cumprimento dos mesmos) e também na proposta, designação e destituição dos titulares dos órgãos sociais ou estatutários”, numa alusão ao facto de as Finanças não terem tido conhecido da indemnização paga a Alexandra Reis
Sobre a articulação com as Finanças, o ex-secretário de Estado das Infraestruturas admitiu na CPI que não deu conta às Finanças do acordo para a saída da ex-administradora Alexandra Reis e o pagamento de uma indemnização de 500 mil euros – algo que Pedro Nuno Santos assegurou no Parlamento que desconhecia. Hugo Mendes, neste caso, reconheceu que falhou.
Omissão do SIS e ingerência política afastada
O documento com 180 páginas deixa de fora os incidentes ocorridos no ministério de João Galamba a 26 de abril e que levaram à recuperação do computador de um ex-adjunto por parte do Serviço de Informações de Segurança (SIS).
A relatora do PS da comissão de inquérito justificou hoje a omissão do caso SIS: "não diz respeito ao objeto da TAP" e por isso ficou de fora. Quanto ao recurso aos serviços de informações, o deputado do PSD Paulo Moniz defendeu nesta quarta-feira, 5 de julho, que é sinal "da confusão e da ingerência entre o Estado e o Governo e o PS" e questionou "como é que se pode enviar" para o Ministério Público "um relatório omitindo este facto, que é de uma gravidade extrema".
Ana Paula Bernardo diz ainda no documento que não há interferência política na gestão da TAP por parte da tutela, relativizando situações levantadas durante as audições, como foi o caso do pedido de alteração de voo do Presidente da República por iniciativa da agência de viagens e da CEO da TAP. Considera aqui que se tratam de meras “iniciativas de membros da Administração da TAP solicitando à tutela uma orientação ou tomada de decisão sobre assunto concreto”. Ou, diz, “situações em que a tutela intervém quando uma decisão de gestão da administração assumiu repercussões políticas, num contexto delicado da vida da empresa e dos enormes sacrifícios que estavam a ser impostos aos trabalhadores, como os cortes salariais e os despedimentos. É o caso da substituição da frota automóvel“.