Não há duas sem três. Primeiro chegou a notícia, avançada pelo JE, de que o concurso milionário da CP para a aquisição de 117 comboios violava, pelo menos, o artigo sobre livre circulação de bens do Tratado sobre o Funcionamento da UE e os princípios da livre concorrência e da não discriminação. Depois soube-se de irregularidades nas propostas de concorrentes, incluindo parâmetros que não cumpriam com o caderno de encargos.
Agora há mais uma acha deitada para a polémica deste concurso. De acordo com o especialista em contratação pública Pedro Telles, algumas alíneas do caderno de encargos, ou seja o concurso – que ascende a 819 milhões de euros – podem conter ajudas de Estado encapotadas. Em si mesmo, pode não ser problemático – veja-se o caso da TAP, que foi autorizada por Bruxelas a receber 3,2 mil milhões de euros dos contribuintes – mas a questão é mesmo essa: o Governo português perguntou sequer a Bruxelas se poderia conceder ajudas de Estado no âmbito deste concurso?
Vamos aos argumentos de Pedro Telles. O especialista, que se tem debruçado em particular sobre este concurso da CP, revela no seu blog ter sido alertado para uma particularidade do caderno de encargos: o facto de este dizer respeito não só ao fabrico e venda de 117 comboios, mas também à construção de uma oficina de manutenção/montagem dos próprios comboios.
“O objeto do contrato é a compra de 117 composições e uma oficina de manutenção para os mesmos. Depois de concluído, este edifício será transferido do adjudicário [ou seja, o vencedor do concurso] para a entidade adjudicante (CP, a empresa ferroviária). Até agora tudo bem. Ou assim parece à primeira vista”, afirma Pedro Telles.
Mas desde logo se levantam problemas. Isto porque adquirir os comboios e a oficina de manutenção em conjunto significa que este “é um contrato misto com duas partes, que poderiam ser separadas e licitadas de forma independente”.
“Para se fazer as coisas corretamente, a oficina deveria ser avaliada por meio dos critérios de adjudicação. No entanto, esta oficina de manutenção não está sujeita a nenhum critério de adjudicação específico, embora se possa argumentar que faz parte do critério de preço”. No entanto, acrescenta, uma vez que não há critérios de avaliação específicos para a construção da oficina (num local já designado em anexos pela CP, no caso em Guifões) “e que não se trata apenas de licitação ao menor preço, a oficina em si aparece mais como condição de desempenho do que qualquer outra coisa”. Ou seja, conclui Pedro Telles, “não existe concorrência real para a oficina, uma vez que o seu preço está incluído no preço global da empreitada e nos respetivos critérios”.
Nas letras pequenas do caderno de encargos, diz o especialista, há mais informação. E o problema agrava-se. “Enterrado num dos anexos à documentação do concurso encontra-se uma ‘enigmática’ referência ao espaço físico onde se vai instalar a oficina e ao que se pode fazer com ela. E é aqui que fica interessante, porque o caderno de encargos diz que se o operador económico [adjudicário] pretender usar aquele espaço para fabricar (ou montar) os comboios então a entrega do edifício deverá acontecer três meses após a entrega do último comboio. Isso significa que o operador que ganhar pode construir a ‘oficina de manutenção' e usá-lo como fábrica durante a vigência do contrato”.
Isto é problemático, sublinha Pedro Telles, porque dá um tratamento diferente aos vários operadores económicos consoante estes usem ou não a “fábrica” de Guifões. “Se construir os comboios na oficina, só terá de entregá-lo à entidade adjudicante três meses após a entrega do último comboio. Se quiser construí-los em qualquer outro lugar, tudo bem, mas a oficina deve ser entregue 24 meses antes de o último comboio ser entregue. Assim, quem fabricar os comboios na oficina ganha a vantagem de usá-la gratuitamente durante 27 meses”, aponta.
O Jornal Económico contactou a CP – adjudicante do concurso – para obter esclarecimentos sobre o caderno de encargos e a possível ajuda de Estado. Nesse sentido, perguntou:
- Por que razão a construção de uma oficina/armazém industrial está incluída no concurso para comboios e não foi feito um concurso internacional à parte?
- Se a construção desta oficina/armazém corre por conta do adjudicatário (qualquer que seja ele), quanto é que a CP se compromete a pagar por esse armazém no final do concurso dos comboios?
- Se o adjudicatário constrói a fábrica, paga uma renda simbólica à CP e depois a CP readquire a mesma fábrica, então isso não configura uma ajuda de Estado ao vencedor do concurso?
- Esta questão foi analisada pelo consultor jurídico da CP neste processo? Existe algum parecer jurídico que suporte esta decisão? Que argumentação usa?
- A CP tem conhecimento sobre se o Estado português contactou a Comissão Europeia para questionar sobre possíveis ajudas de Estado neste concurso?
Até o momento da publicação desta notícia, a CP ainda não tinha respondido ao JE. Quando o fizer, as respostas da empresa pública serão acrescentadas ao artigo.
Do ponto de vista jurídico, Pedro Telles sublinha que os auxílios estatais são “fortemente regulamentados” dentro da UE, para impedir os países mais ricos desequilibrem o terreno de jogo a favor das “suas” empresas. Em causa está o artigo 107 do Tratado sobre o Funcionamento da UE (TFUE).
As regras de auxílios estatais entram em vigor quando, num determinado processo económico, são utilizados recursos do Estado; se esse processo é atribuível ao Estado; se o destinatário obtém uma vantagem económica de forma selectiva; se há ou pode haver uma distorção da concorrência e se é provável que o procedimento afete o livre comércio entre os Estados-membros. É claro que, recorda Pedro Telles, os Estados-Membros têm “a obrigação de notificar a Comissão sobre qualquer medida” que possa configurar um auxílio estatal, no fundo para que a Comissão faça uma avaliação da sua compatibilidade.
Foi isso que (não) aconteceu no primeiro processo de reprivatização da Efacec, quando o Governo escolheu a DST e os termos acertados configuravam uma ajuda de Estado, uma vez que o Estado assumia parte ou toda a capitalização da empresa. Essa venda acabou por cair porque a DST não quis que o negócio se fizesse sob o rótulo (e com as obrigações subsequentes) da ajuda de Estado. Ou seja, essencialmente – como disse na altura a Comissão – esse pedido para “ver se está tudo confirme” deve ser feito “antes” de a medida ser concedida.
De acordo com Pedro Telles, resulta “óbvio” que o primeiro requisito é “claramente cumprido”. “Trata-se de um contrato público em que o Estado intervém e que inclui recursos do Estado para pagar a construção de uma oficina de manutenção e permitir a utilização gratuita de um terreno público para uma empresa de fabricação dos comboios”.
Também parece claro ao especialista, devido às declarações públicas do ministro das Infraestruturas da altura, Pedro Nuno Santos, que existe uma “clara ligação entre a decisão política e o critério de adjudicação” condicionado à oficina de manutenção.
Quanto ao terceiro requisito, Pedro Telles é também preciso, ainda que ressalve que é o mais difícil de definir: o procedimento não cumpre as regras de contratação da UE atualmente em vigor. Ora a orientação da Comissão Europeia é a de que não existe ajuda de Estado se as regras de contratação forem cumpridas (que garantem que não é atribuída nenhuma vantagem selectiva). Mas, reforça o especialista, as boas práticas e as regras de contratação da UE não foram cumpridas, como o JE também já avançou.
“Quanto à distorção da concorrência, acho que essa é mais do que clara. É óbvio que se o licitante preferencial está a utilizar uma instalação paga pelo Estado Português para construir os comboios, não está a utilizar as suas próprias instalações para o fazer, libertando-as para serem utilizadas noutros contratos noutros locais e distorcendo assim a concorrência, uma vez que essas instalações estão disponíveis para serem implantados e não amarradas. Isto significa que, neste cenário, a empresa teria de aplicar capital próprio para expandir a produção, o que já não é necessário, uma vez que utiliza gratuitamente uma instalação em Portugal”, explica.
Por último, o JE também tentou saber qual é a posição da Comissão Europeia perante concursos públicos deste género. Nesse sentido, enviou à equipa do Comissário Thierry Breton, com o pelouro do mercado interno, várias perguntas. A Direção Geral de Mercado Interno, Indústria, Empreendedorismo e PME é a adequada para lidar com a matéria.
O JE quis saber a posição da Comissão sobre se o concurso representa ou não um auxílio de Estado; se viola ou não as regras comunitárias; se a Comissão tem conhecimento formal ou informal deste concurso e se abriu ou não um procedimento contra o mesmo. Uma fonte oficial da comissão disse apenas que "de acordo com a informação existente, a Comissão não recebeu qualquer queixa, petição ou pedidos de informação que digam respeito a este concurso público. Nesta fase, a Comissão não pretende abrir um procedimento" contra o mesmo.
Resta saber se está disponível para isso se ou quando, de facto, receber uma queixa formal. E, recorde-se, uma vez que está em causa o princípio da livre concorrência e da não-discriminação, qualquer empresa de um Estado-membro (ou dos países com os quais a UE tenha acordos) que sinta que poderia ter concorrido, mas não o fez por considerar o concurso desequilibrado, poderá fazê-lo junto de Bruxelas.