Os preços da eletricidade no mercado grossista ibérico de eletricidade estão a afundar e atingiram mesmo valores negativos durante duas horas na sexta-feira, 5 de abril, algo inédito no país, .
À partida, a descida dos preços até pode ser uma boa notícia para os consumidores (se se mantiverem), mas os preços ameaçam travar novos investimentos na energia solar por os promotores não conseguirem obter financiamento, perante a falta de previsibilidade de receitas.
Mais, se o investimento privado travar na energia solar, o país não vai conseguir cumprir as metas europeias conforme previstas no Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) 2030.
Para esta segunda-feira, o preço médio da eletricidade para Portugal no mercado ibérico vai estar nos 0,41 euros/MWh. O 'preço zero' tem sido uma constante nas últimas semanas, com preços abaixo de um euro em seis dos 15 últimos dias. Aliás, é preciso recuar até 25 de março para o mercado registar preços médios diários acima de 10 euros (nesse dia foi registado 21,49 euros/MWh).
Especialistas consultados pelo Jornal Económico avisam que os preços baixos ameaçam complicar a vida dos promotores com planos para investir em novas centrais solares em Portugal.
"Neste momento, várias empresas estão com dificuldade em encontrar os números que justifiquem o prosseguimento de investimentos significativos no solar. O preço capturado nas alturas em que o solar está a produzir é de zero ou próximo. Este é um problema muito complicado de resolver: não há números para fundamentar os investimentos. Os investidores quando querem financiar os projetos, chegam ao banco, mas os números não saem. Este é um grande desafio", começou por dizer ao JE Nuno Ribeiro da Silva, consultor de energia. "Aos investidores mais pequenos começa-lhes a faltar o tapete. Não é evidente que estejam reunidas as condições de mercado para que se mantenha a dinâmica de investimento ao ritmo necessário".
O ex-ceo da Endesa Portugal destaca que este ano o país tem estado a ser exportador líquido para Espanha e que existe uma "mistificação" com a questão da importação de energia. "No Mibel, há uma constante comparação de preços entre os custos de geração de Portugal e Espanha e existem trocas em função das tecnologias disponíveis ao melhor preço. Se não estivéssemos a importar quando há renováveis disponíveis em Espanha tínhamos de estar a importar e a queimar gás para gerar eletricidade. Há períodos em que estamos a importar muito de Espanha porque é mais barato e também exportamos. E se não estivéssemos a importar quando há preços mais baixos em Espanha estávamos a comprar gás, que é muito mais caro para satisfazer as necessidades do país".
Por sua vez, António Sá da Costa, o sistema de remuneração "tem de ser alterado". "Agora são duas horas, mas o que é que vai acontecer quando passar a ser 100% renovável durante as 8.700 horas do ano com o preço zero. Quem vai investir numa fábrica para depois oferecer o produto que fabrica. Tem de haver um sistema diferente de remuneração. Quem nunca quis alterar este sistema foram as grandes elétricas europeias, nunca acreditaram nas renováveis. Posso criticar os políticos portugueses que nunca se fizeram ouvir".
E deixa uma sugestão aos produtores que podem usar ferramentas disponíveis para planear a produção: "não pode haver cambão, mas as pessoas inteligentes podem tomar uma atitude: os donos das centrais têm a liberdade, podem produzir menos do que poderiam. Se eu sei que o consumo vai ser superior à produção renovável, já sei que quem vai marcar o preço é uma fóssil, mais cara, e se a fóssil fecha, todos recebem a preço da fóssil. Assunto resolvido. Em vez de oferecer 100% da produção, posso oferecer 80%. Ofereço menos e quem fecha o mercado volta outra vez a ser uma fóssil. Não é cambão, pois cada um toma a sua decisão", acrescentou.
Já Pedro Amaral Jorge, presidente da Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN), aponta que a situação atual é como "querer produzir um produto, ter custos para produzir eletrões e o mercado vai-me pagar zero por isso. É semelhante a ter um modelo de negócio em que vou construir um ativo que vai ser vendido a zero".
No caso das centrais atuais, estas já obtiveram financiamento e vendem parte da produção em acordos PPA, sublinha. Mas para quem procura financiamento agora, "não há forma de colocar a eletricidade a estes preços. É preciso repensar o desenho do mercado spot, o mercado diário e intra-diário ibérico para conseguir capturar especificidades da eletricidade sem custos variáveis".
Por seu turno, outro especialista apelou à intervenção da nova ministra do Ambiente e da Energia: "os preços nos mercados elétricos grossistas de amanhã, segunda-feira dia 8 de Abril são alarmantes. Preços baixos de eletricidade a um fim de semana com baixos consumos, é o que os modelos indicavam. Mas valores perto de zero em Espanha e Portugal e de 5 Euros por MWh, em França, a uma segunda-feira com consumos normais faz tocar as campainhas de alarme. O Modelo do Mercado Elétrico precisa mesmo de ser revisto. Senhora Ministra Maria Da Graça Carvalho, contamos consigo", escreveu António Vidigal nas redes sociais.
E quais as soluções para tornar os preços mais atrativos e possibilitar investimentos?
"Este tema está na agenda em Bruxelas. É preciso haver uma solução de mercado, encontrar as tecnologias e a possibilidade de armazenar essa eletricidade, seja por via da acumulação de água a montante, seja por via do desenvolvimento em paralelo de eletrolisadores para a produção de hidrogénio verde que aproveite esse excedente de eletricidade em certos períodos do dia", segundo Nuno Ribeiro da Silva.
Por outro lado, também defende uma revisão do sistema de remuneração de eletricidade. "Isto são tecnologias novas em que o custo de investimento é elevado e em que os custos variáveis são praticamente zero. Se tenho o investimento já feito, como tenho vento e sol à borla, estou disposto a vender e a entregar à rede com estes preços. Mas não me dá condições para prosseguir com novos investimentos. Não se pode pensar na transição, se nivelarmos as tarifas apenas pelos custos variáveis das novas tecnologias, não se consegue os economics. Há várias soluções possíveis: haver remuneração sobre a potência instalada e disponível para responder à procura; a valorização da descarbonização, do CO2 evitado por estas tecnologias; a criação de um cap e floor, uma banda - não é feed in tarif -, mas um sistema em que se o preço fica acima de 50 euros/Mwh, o investidor não recebe mais, se ficar abaixo de 20 euros/MWh, recebe pelo menos 20 euros e fica com essa segurança", acrescentou.
Caso contrário, "vamos ter um stop efetivo no investimento das renováveis, pelo menos na tecnologia fotovoltaica, havendo esta concentração e sem a possibilidade de ter armazenamento, com a concentração de produção na rede entre as 9h e as 17h, quando o sol brilha. Deixa de fazer sentido e ser economicamente racional estar a investir mais quando o preço é zero, e a rede nem tem capacidade de receber essa eletricidade que está a ser gerada".
Já António Sá da Costa defende o pagamento de uma tarifa feed-in às centrais existentes e às futuras, para garantir uma "receita mínima": "para garantir o custo de investimento, financiamento, operação e manutenção".
Sá da Costa deixa críticas a quem pensa que os preços baixos da eletricidade vão "fomentar o hidrogénio". "Mas se eu receber zero, qual o meu incentivo para produzir, se vou perder dinheiro".
E deixa um aviso: se as centrais não forem rentáveis, entrarão em falência e serão compradas por fundos abutre. "Se os proprietários não conseguirem pagar as dívidas ao banco, abrem falência e os bancos tomam posse, ficam com o menino nas mãos. Mas como os bancos não têm capacidade para gerir, vamos imaginar, eólicas, ficam com um valor negativo nas suas contas e vão tentar vender o que têm para cobrir ao máximo a dívida registada nas suas contas, controlar o prejuízo. Os investidores em massas falidas compram isso por metade do valor, conseguem vender a eletricidade produzida a preços mais baixos. Quem se lixa com isso é quem investiu. Estariam assim a chamar capitais abutres para comprarem aquilo ao preço da uva mijona. Perdia o país como um todo".
Por sua vez, o líder da APREN defende que o tema terá de ser "revisitado" na Comissão Europeia quando o novo executivo assumir funções, após as eleições europeias deste ano. "Se queremos chegar às metas de 42,5% a partir de fontes renováveis, é preciso investimento do sector privado, criar condições de bancabilidade, assegurar que o mercado compre o meu produto a um preço enquadrado que reembolse custos operacionais e de capital".
"As metas do PNEC nacional e de todos os PNEC da UE, porque existe o pressuposto de que aquelas metas atraem investimento privado. Se os investidores recebem zero, não investem", salienta Pedro Amaral Jorge.
O responsável também alerta que os preços zero não vão ter impacto na próxima fatura mensal dos consumidores. "A fatura da eletricidade tem três componentes: energia, redes e CIEG e impostos. Como as pessoas não estão indexadas ao mercado diário e intra-diário, não estão expostas a este mercado e demora que a fatura venha a ter essa consequência".