Em mês e meio, entre a primeira semana de junho e 22 de julho – quando apresentou à insolvência a subsidiária na Alemanha – a Inapa passou de uma situação de constrangimentos de tesouraria que considerava pontuais e resolúveis para um choque frontal na parede.
Pelo meio, ainda surgiu uma oferta da gigante japonesa Japan Pulp and Paper (JPP), que implicava um “haircut” da dívida bancária entre 50 e 70%, mas também que o principal acionista, a Parpública, emprestasse 12 milhões de euros, algo que a empresa pública não queria e acabou por não fazer. O Jornal Económico conta-lhe a história do mês e meio frenético que culminou no fim da Inapa.
A braços com um negócio de distribuição de papel que, em média, encolhe anualmente cerca de 7%, a Inapa enfrentou quebras de vendas superiores a 20% nos piores anos da pandemia, seguido de uma recuperação em 2022 e nova queda forte em 2023. Em três anos, o mercado do papel caiu 40%.
A estratégia da Inapa tinha sido a da internacionalização, apostando na ideia de que com o negócio a encolher, a distribuição do papel na Europa acabaria por se concentrar em três ou quatro grandes players. A Inapa apostava em ser um deles, daí ter comprado operação em França e na Alemanha. No último ano, já dois terços de toda a faturação da Inapa provinham da subsidiária alemã.
Foi precisamente a operação na Alemanha, ou mais precisamente a lei de insolvências na Alemanha, que fez chegar o fogo ao rastilho. Já historicamente lastrada pela dívida – que ascende a valores em torno dos 300 milhões de euros, dos quais cerca de 50 milhões em dívida bancária ao Novobanco e ao BCP – a situação de tesouraria da Inapa começou a deteriorar-se ainda mais com o aumento do preço dos materiais e a subida das taxas de juro.
Na Alemanha, a Inapa tinha de fazer um orçamento de tesouraria a três semanas, para que através desse documento possa provar que tem a liquidez para as três semanas seguintes. E se não tiver liquidez, tem de a repôr no final dessas três semanas.
Isto tem a ver com as regras da lei alemã da insolvência. O que acontece na Alemanha é se num determinado dia a empresa não tem capacidade de pagar todas as suas responsabilidades, pelo menos 90% das faturas que são devidas nesse dia, entra numa lógica de um período de vigilância e tem que se garantir que, ao fim dessas três semanas, é capaz de fazer face a todas as responsabilidades.
Se chegando ao fim desse prazo tiver que atrasar um dia o pagamento aos fornecedores, já é considerado que não cumpre as suas responsabilidades. Portanto, tem que apresentar a empresa à insolvência. Sendo que na Alemanha há uma responsabilidade pessoal e criminal dos administradores caso não coloquem a empresa a insolvência no momento em que a devem colocar.
Nunca tendo conseguido reestruturar a dívida da holding, a Inapa sofreu um impacto forte do aumento das taxas de juro, com pagamentos cada vez maiores. Com a tesouraria apertada e o espartilho da lei das insolvências alemã, a gestão da empresa foi gerindo, mas receando um momento em que tudo corresse mal. Foi o que aconteceu em maio.
O mês de maio é quase sempre mau na Europa para a venda do papel – por causa dos feriados. Mas este ano foi particularmente mau nas vendas da Inapa. Na Alemanha celebraram-se este maio – em todos os estados – cinco feriados, dois deles a uma quinta-feira (o dia da Ascenção e o Corpo de Deus) e outro a uma segunda-feira, o Pentecostes. As ‘pontes’ fecharam as operações da Inapa mais de uma semana no mês de maio.
No início de junho, a Inapa – que recorre em larga medida a operações de factoring e seguros de crédito – percebe que no arranque de julho não conseguiria pagar a totalidade das faturas. E que teria de começar a pagar com quatro ou cinco dias de atraso. Logo a 6 de junho, noticiou o jornal “Eco” no final do mês passado, a Inapa comunicou à Parpública que precisaria de 15 milhões de euros para lidar com esta situação. Esta nota terá sido enviada ao vice-presidente da Parpública com quem a Inapa falava nessa altura, Marco Neves.
Este valor pedido à acionista Parpública corresponde, grosso modo, cinco dias de pagamento na Alemanha. E se não os tivesse a Inapa passaria as três semanas a a pagar com quatro a cinco dias de atraso a fornecedores. Numa outra geografia isto não seria necessariamente um tema. Mas na Alemanha é. E a Inapa diz ter avisado a Parpública desta situação em repetidas ocasiões.
Mais de um mês depois, em julho, a Parpública viria a rever esse valor pedido ao seu acionista principal, para 12 de milhões de euros. Mas muito se passou entre uma data e outra.
Uma oferta de compra “caída do céu”
Apesar de o anterior governo (PS, de António Costa) ter dado orientação à Parpública para avaliar a venda da sua posição na Inapa – como revelou o Jornal Económico – não são conhecidos passos dados pelo conselho de administração da empresa pública nesse sentido. Mas a gestão da Inapa fez esse caminho. Fontes conhecedoras do processo contaram ao JE que a administração da Inapa encomendou um trabalho à consultora Mckinzey sobre uma reestruturação da empresa, cujas conclusões foram claras: a Inapa teria equacionar ser comprada por um dos grandes mundiais do sector do papel.
A consultora inclinava-se para players sul-africanos, sul-americanos ou asiáticos. Porquê? Porque eram estes que não tinham uma posição na Europa, e poderiam ver a compra da Inapa como uma forma de ter acesso imediato aos mercados europeus. A portuguesa Navigator poderia ser uma hipótese, mas mais remota. No verão de 2023 tinha havido manifestações de interesse e a administração da Inapa – sobretudo através do CEO, Frederico Lupi, do controller, Afonso Chaby, mas também a CFO, Inês Louro – retomaram contactos.
Um parênteses. Em setembro de 2023, a administração chegou a reunir-se com um potencial interessado, tendo voado até Singapura para falar com o April Group [Asia Pacific Resources International Limited, do empresário indonésio Sukanto Tanoto, baseado precisamente naquela cidade]. O encontro – prévio ao estudo da McKinzey – foi considerado "extemporâneo", até porque o April Group é um produtor de papel e não apenas um distribuidor, como a Inapa. É a mesma razão pela qual a Navigator é uma hipótese mais remota.
Mas voltando a 2024. No decorrer do trabalho de contactos (que também incluiu private equities), a administração da Inapa falou com a Japan Pulp and Paper (JPP) e perguntou se a gigante japonesa estaria disponível para falar sobre um eventual negócio. Por esta altura já a Inapa se tinha apercebido dos problemas que ia ter para cumprir os pagamentos em julho e o relógio estava a contar, com um pedido de ajuda formal feito à Parpública.
A JPP disse que sim e a reunião ficou marcada para 17 de Junho, em Paris. Os três administradores da Inapa voaram para Paris, onde se encontraram com a equipa de Internacional da JPP, incluindo o vice-presidente executivo do Grupo JPP para a área internacional, Mitsutoshi Imamura, o presidente da Japan Pulp&Paper USA, Hiroshi Kashima, bem como um intermediário sueco, sediado em França.
A reunião envolveu apresentações das operações de parte a parte, e os pormenores sobre o que foi discutido são escassos. Mas no dia 10 de julho, a Inapa recebeu um email considerado crucial para o seu futuro: a JPP, através do email, apresentava uma oferta tentativa para compra da Inapa. Este é o mesmo dia em que, segundo o jornal “Eco”, a Inapa enviou um email “logo pela manhã” à Parpública a reduzir o montante de apoio imediato que precisava de 15 para 12 milhões de euros.
Neste email de 10 de julho, os japoneses da JPP proponham um negócio com o seguinte formato: uma negociação direta com os principais acionistas (Parpública, Nova Expressão e Novobanco); um “haircut” da dívida bancária [que o JE apurou que seria entre 50% e 70%] e uma OPA, como é obrigatória de lei, lançada sobre os pequenos acionistas em Portugal.
Era um formato de negócio muito parecido com a compra da Antalia, um conglomerado concorrente da Inapa na Europa, por parte de um dos concorrentes do JPP, os também japoneses da KPP (Kokusai Pulp&Paper).
A JPP também enviou detalhes por escrito com uma descrição indicativa dos timings da operação. A proposta da oferta preliminar foi enviada em 10 de julho e previa: aprovação do negócio na comissão executiva da JPP em 22 de Julho, a assinatura da LOI (Letter of Intent) final em 20 de agosto. Seguir-se-ia um período de due diligence entre agosto e outubro; em novembro e dezembro negociações (sobretudo preço) e assinatura do assinatura do SPA (sales and purchase agreement) com os principais acionistas.
Os japoneses disseram à administração da Inapa que estavam interessados em toda a operação menos na Turquia e em Angola, um operação que é pequena nas contas do grupo português. Mas quando vem a carta, apenas Angola ficava de fora. A Inapa perguntou se a Turquia, de repente, passava a interessar. E a resposta foi positiva: a JPP tinha analisado o eventual negócio em Conselho de Administração e chegou à conclusão que a Turquia poderia ser um bom entreposto para o Médio Oriente, porque a JPP estava fraca no Médio Oriente. Portanto, queria a operação da Inapa em Istambul. Só não queria Angola.
A administração da Inapa – apesar de estar na posse de informação confidencial entre a Inapa e a JPP – falou com os maiores acionistas: a Parpública, a Nova Expressão, de Pedro Baltazar, e o Novobanco. A oferta da JPP estava condicionada a que houvesse abertura dos três principais acionistas à operação.
E, dizem ao JE fontes familiarizadas com o processo, todos os acionistas da Inapa concordaram com o formato do negócio. O interlocutor da Parpública com a Inapa nessa situação era o vice-presidente Marco Neves (ex-Novobanco e ex-Banco de Fomento). Marco Neves terá dito à admnistração da Inapa que um dos seus objectivo dentro da Parpública era precisamente o de vender a Inapa. já que estava também a negociar o autódromo do Estoril.
Mas para tudo avançar seria preciso que a Inapa ainda estivesse viva no momento da venda. Para isso, a Inapa reforçou o pedido de apoio de 12 milhões de euros à Parpública, sendo que agora os outros acionistas estavam a entrar cada um (a sua escala) com 30% das verbas necessárias (a Nova Expressão entraria com cerca de 2,4 milhões de euros). Com a data limite de 22 de julho a aproximar-se – a partir daí a empresa teria de dar-se como insolvente na Alemanha – a administração da Inapa também escreveu ao ministério das Finanças, em 18 de julho, para reforçar a necessidade de urgência e informar das últimas evoluções do caso.
No dia 19 de julho, a administração da Inapa foi chamada a uma reunião por Teams com o "board" da Parpública, onde o presidente da Parpública terá mostrado o seu desagrado por a Inapa ter ultrapassado a hierarquia e falado diretamente com a tutela. Na mesma reunião, a administração da Parpública – que se fez acompanhar de um consultor jurídico externo, Pedro Leite Alves – disse que o apoio pedido estava fora de causa, porque havia um despacho do anterior governo que proibia este tipo de apoio financeiro. A Inapa, que no dia 11 de julho já tinha visto a negociação das suas ações ser suspensa pela CMVM, apresentou à insolvência a sua subsidiária da Alemanha da no dia 22 de julho, o dia em que a JPP supostamente iria aprovar a sua compra em conselho de administração.
Dias mais tarde, no dia 1 de agosto, o juízo de comércio de Sintra proferiu sentença da declaração de insolvência do Grupo Inata.