Vários meios de comunicação estiveram atentos às distorções da verdade que caracterizam as intervenções do novo presidente dos Estados Unidos – e o discurso de tomada de posse não podia deixar de ter os seus ‘momentos’.
Um deles tem a ver com a inflação. Se é possível dizer que a inflação que grassou no mundo nos últimos dois anos foi desencadeada pelo aumento inesperado da energia, é impossível afirmar que a culpa é de qualquer ato ou decisão da administração de Joe Biden. Tudo começou na invasão da Ucrânia por parte da Rússia, que implicou um aumento muito acentuado dos preços do gás natural. E tudo continuou porque a OPEP recusou espaldar a manutenção do preço do crude nos mercados internacionais – tendo optado por patrocinar o aumento dos preços internacionais ao manter os cortes na produção. A administração Trump tentou demover os países pertencentes à OPEP, mas nunca o conseguiu. De qualquer modo, o aumento dos preços acabou por permitir aos produtores norte-americanos, nomeadamente de gás liquefeito, fazerem excelentes negócios, dado que constituíram uma alternativa ao gás russo, ‘bloqueado’ pelas sanções dos EUA e da União Europeia. De qualquer maneira, a inflação dos EUA atingiu um pico de quatro décadas no verão de 2022: 9,1%, muito abaixo do máximo histórico de 23,7% em junho de 1920 – e atualmente (em dezembro) é de 2,9%.
O Canal do Panamá também gera opiniões divergentes. Trump diz que 38 mil norte-americanos morreram durante a construção do canal e que, apesar disso, "a China está a operar" o canal. Segundo indicações dos ‘fact checkers’, o número oficial de mortos é de cerca de 5.600 pessoas. Embora o número real possa ser maior, a maioria das mortes terá vindo de trabalhadores de ilhas caribenhas como Antígua, Barbados e Jamaica. Além disso, a administração do Canal do Panamá nega que a China controle as operações do canal. O que se passa é que as empresas chinesas que operam nos portos do Canal fazem parte de um consórcio originário de Hong Kong que venceu um processo de licitação em 1997. E empresas norte-americanas e taiwanesas operam outros portos ao longo do canal. Convém esclarecer que, se não fosse o canal, o Panamá provavelmente não existiria enquanto unidade política autónoma da Colômbia: foram os Estados Unidos que patrocinaram e apoiaram militarmente uma revolta historicamente insipiente que resultou na criação mais ou menos artificial do Panamá em 1903.
Trump afirma também que os Estados Unidos gastam mais dinheiro em saúde do que qualquer outro país do mundo. Os britânicos do ‘The Guardian’ afirmam que Trump está correto: o país gasta em saúde (per capita) quase o dobro da média dos outros países ricos.
O novo presidente afirma como uma das suas máximas que o país está ‘infestado’ de imigrantes ilegais, violentos e criminosos. Haverá muitos, com certeza, mas os jornais norte-americanos afirmam que a maioria dos imigrantes entrou legalmente, com permissão de trabalho ou autorização para permanecer enquanto os seus casos são resolvidos nos tribunais. Aliás, os analistas afirmam que, se os imigrantes tivessem dinheiro para contestar as ordens de expulsão em tribunal, uma larga percentagem teria, à luz das leis atuais, permissão para se manterem nos Estados Unidos. Além disso, no geral, os imigrantes são menos propensos a cometer crimes do que os nascidos nos Estados Unidos, de acordo com vários estudos, como os do conservador Cato Institute.
Donald Trump queixa-se de várias coisas para afirmar que o setor automóvel norte-americano foi asfixiado pela concorrência asiática e pela mobilidade elétrica. De facto, a concorrência asiática ‘matou’ a indústria automóvel norte-americana, ou parte dela. Mas não foram os automóveis elétricos chineses a fazê-lo: foram as grandes marcas nipónicas – cujo desenvolvimento foi apoiado pelos Estados Unidos a partir da década de 1950 – que souberam encontrar formas de produção mais resilientes à concorrência (nomeadamente à europeia) e, principalmente, mais produtivas – até porque os salários eram, no Japão, muito mais baixos que nos Estados Unidos, mas isso os norte-americanos já sabiam quando aceitaram patrocinar o seu crescimento. Ou seja, a indústria automóvel norte-americana foi desmantelada pelos ‘amigos japoneses’ e não pelos ‘inimigos chineses’.
Um dos temas mais controversos de Trump é a alegação de que nos Estados Unidos só há dois sexos: o feminino e o masculino. É verdade, e vale para o mundo inteiro – com a muitíssimo rara exceção do hermafroditismo, que é uma mutação genética. Mudar de sexo, uma liberdade que convém preservar, não tem nada a ver com o assunto.